Um Neruda

Bloom - Running Leopard posters (c) Bloom - Running leopard

"A vida acaba definitivamente nos meus pés"

Pablo Neruda, in "Antologia Breve"

JEO

De volta

 Picasso - Dove of Peace (serigraph) posters

Picasso

Após seis dias de pausa, é sempre bom voltar. Mesmo sem comentários. E só para picar o ponto, como se diz por aí.

JEO

À espera da próxima vez de respirar

Brassaï - Brouillard, Avenue de l'Observatoire posters

(c) Brassaï - Brouillard, Avenue de l'Observatoire

Percorre-me uma hora nocturna. Saio. Desinfecto-me do mundo. Há por aqui oxigénio que chegue para sufocar um pouco menos. Neste ambiente subterrâneo encontro todas as frases. Todas as imagens. E fico-me por aqui. Sentado, à espera do próximo metro.

À espera da próxima vez de respirar.

Se não sufoco é porque não quero morrer agora. Mesmo. Esta agonia é passageira, apesar de tudo. Breve e passageira.

Ainda é noite aqui por baixo. Noite eterna, porventura.

Passam caras. Passam passos arrastados num silêncio velado, que não meu. Passam, abraçados, namorados, no compasso dos passos que se dão. E dos beijos que prometem com os olhos.

A esta hora, o ritmo do mundo marca-se com rugido de comboios, luz de túneis e linhas de carris. A esta hora já não há quem seja humano. Aqui dentro (debaixo) tudo é máquina, ruído e luz. Ruído e luz. E eu estou lá dentro. Faço-me máquina também.

Procuro sensações. Procuro imagens. Tudo me foge perante o sono. Tudo me escapa a este ritmo. Vou perder o próximo autocarro. Ainda há homens que se arrastam, limpos, penteados, bem vestidos. Farejam a vida com mãos cegas. Afinal, a vida é que anda atrás deles. Ronda-os o prazer de sentir felicidade. Ronda-os apenas. Não os toca. Não os quer. Nem os toma, jamais, para si.

Vou sair deste túnel. Regresso à vida. À superfície. Faço-me sozinho. Percorro as minhas avenidas. Aqui o ar seria menos poluído sem os carros-humanos-que-são-máquinas.

JEO

Uma imagem

Picasso, Pablo - Bullfight II - Matador posters

Picasso

Toureiro universal.

JEO

Essas pupilas

A. Aubrey Bodine - Heavy Seas(c. 1950) (Large) posters

A. Aubrey Bodine - Heavy Seas (1950)

Perplexo, sempre e mais uma vez, frente a esta página em branco, fixo os teus olhos. Neutros, da lonjura. Não me vês?

Olha-me de fronte: diz-me o que entra nos teus olhos. Descreve a minha imagem transmutada no teu corpo. Redige-me. Pinta aos meus ouvidos as cores da minha boca, dos meus dentes.

Revê-me. Sê paciente. Recria em ti tudo o que sou e que recolhes.

Essas pupilas. Muito daria para voltar a beijar as pérolas desse rosto. A quem as deste?

(Texto escrito em Julho de 1997)

JEO

Ah, pois é

Pasme quem pensa que tudo o que existe é definitivo.

Avance quem sabe que essa certeza não passa de um logro.

JEO

A António Ramos Rosa - 80 anos

A calma é lua breve que se inspira - JEO

António Ramos Rosa completa hoje 80 anos. Muito daquilo que escrevo é culpa sua. Cresci com a sua palavra, com o seu silêncio. O seu estar quieto das coisas.

Deixa-me aqui mais esta marca.

Eu deixo-lhe também um agradecimento.

JEO

No centro de mim

Abate-se uma nuvem de lágrimas sobre a cidade. Corpos de mulher abarcam os meus olhos. Completos, esses gestos. Movimento. Ritmo sob as lágrimas da chuva.

Dentro da cidade triste escorrem passos incontáveis. Rostos, ilusões e miragens. Máquinas urram no espaço, dominam, à passagem, os meus ouvidos assombrados. Distraem-me dos corpos das mulheres. E passam, numa constância que enerva.

Não vou chegar a tempo ao meu destino. Passam-se as horas. Perco o espaço que me resta. O compromisso que fiz comigo. Dei-me um limite que devo cumprir. Até à hora marcada, no centro da cidade das nuvens de lágrimas.

No centro de mim.

JEO

Sempre a dúvida

De que me servem os olhos se não vejo o que não vejo?

JEO

Faltas-me aos olhos

Saciei-me da fome. Matei a sede. Falta-me, contudo, a substância. Uma só. A vitamina da alma e do desejo. Insosso, o correr dos dias resfria-me a língua. Sem o sabor do teu corpo. Longe. Tenho fome. Da sede, dessa, não me lembro já de a beber com o que mes resta de alma. Faltas-me aos olhos. Aparece.

JEO

Em espera

"O beijo" (Der Kuß), por Gustav Klimt

Aguardo. Inteira. A tua face. Desembarcaste há dias noutro porto. Mas levaste-me. Contigo. Na memória.

Não esperarás. Também tu. Pelo regresso?

JEO

Fome

Como um pão. E é como se toda a seiva da terra entrasse por mim adentro. A minha saliva é a água da chuva convertida em espuma. Os meus dentes são arados que sulcam a terra e lhe põem o húmus à flor da pele. O meu adubo é o apetite que tenho e faz crescer, na vontade, a fome de outro pão na mesma boca.

JEO

Alberto Caeiro revisitado

Apetece-me ler um pouco. Ler é bom. Porque há lá, dentro dos livros, mundos novos e sóis que nunca se põem. Podemos ler de noite e ver o Sol. Isso é muito bom. Aquece-nos a cara quando ficamos com sono. É.

Eu não queria dizer mais nada. Mas as palavras nascem de uma vontade que eu não conheço e que talvez me domine, sem eu saber. Não conheço essa vontade e não a domino, da mesma forma que o mundo não domina o vento e o calor. Senão conhecia-se a si próprio.

Ainda me apetece ler um bocadinho. Mas penso naquelas pessoas a quem vai apetecer ler aquilo que agora escrevo, o que eu escrevo, um dia. Penso nelas e só nelas. Porque não sou egoísta. E porque gosto de escrever, assim como gosto das coisas e gosto só um poucochinho do pôr do Sol. O pôr do Sol é vadio. Nunca tem casa. Não se aninha numa montanha porquê? Também deve ter frio, como as minhas mãos. Talvez por ser muito grande. Tudo o que é grande deveria sentir frio, porque o vento bate mais e a chuva molha em maior quantidade. Eu não quero ser grande.

Não gosto muito do frio. As minhas mãos não falam, mas eu sei que têm mais frio do que eu. Às vezes gostava de ser as minhas mãos e andar lá, por cima dos braços esticados e mergulhar nas arcas velhas quando se anda à procura de um cobertor mais macio que nos tape à noite. Elas conhecem um mundo diferente do meu. Elas, as minhas mãos, sentem a textura das coisas quando tocam só de leve, quase sem sentir. Conhecem outras mãos de outros corpos quando há um aperto de mão.

Ah. Elas conhecem tanta coisa. Que eu nem imagino. Imaginar é bom. Por isso eu gosto das minhas mãos.

Se não fosse por isso eu gostava delas na mesma.

(Texto escrito em 1990)

JEO

A imensidão calada das coisas

Penso o silêncio. Oiço o calar de tudo o que é calado. Encontro-me com a totalidade, com um universo que não fala comigo, com a imensidão calada das coisas. E fico só.

Nesse momento encontro a minha face outra, o meu eu que não conheço e não desvendo, porque calado, também ele. Fico ainda mais só. Todo. Eu. Só, eu todo. E adormeço. E finjo ser então calado também no meu sono. Finjo-me enquanto não sei quem sou ou o que desvendo.

A imensidão toda que pensei perde-se nesse pecado de fingir, nessa fronteira entre um bem e um mal que não conheço, mas que sinto, paredes-meias com a minha consciência do que é bem para mim e do que é mal para comigo.

Transfiguro-me no sonho e sinto um cheiro inválido e perene de nevoeiros oníricos que me fazem submisso de si. Perco-me, também, por isso. Porque não sei o caminho de volta. Porque não sei se é labirinto ou terra plana e limpa esta que piso.

Porque já não sei qual o momento de acordar.

(Texto escrito em 1989)

JEO

Respiração inconsciente

Há horas em que a minha consciência não me pertence. Não sou seu dono. Sou, sim, seu comandado obediente e subjugado. Quando assim é não sou eu quem por mim age, quem por mim se movimenta. Entro num transe seduzido e sem retorno.

É quando a noite se faz ao mundo e se ouvem uivos de lobos mansos ao longe, ecoando na gândara sob o corpo da lua.

Estar vivo, nesses momentos, é não sentir que se vive, é respirar sem consciência disso, é estar sentado diante de uma parede e imaginar o mundo em movimento nela. Estar vivo, então, é ter os olhos fechados e ver perfeitamente. Perfeitamente.

Assim como quem olha e vê.

JEO

Não mereço nada do que tenho

Amargamente me apercebo da hora tardia em que acordei. Até então vivi em sonhos. No paraíso de uma consciência liberta. Prazeres agora findos.

Já não há lugar para vícios inoportunos e excessivos.

Revejo a minha cara no espelho verdadeiro do mundo: este sou eu!, o ilusionado, o visionário acordado fora de tempo, o sonhador enovelado nas palavras mansas e arredias de tudo o que é vil e humanamente insuportável.

Não mereço nada do que tenho. Sanguessuga desde que nasci, até agora. Os meus olhos, agora (tarde) bem abertos, nada enxergam. A cor que vêem nas coisas é só sua, ficção ocular e frágil, mesmo assim.

Desfaleço. Ninguém me acode.

Há muito que não estava só.

(Texto escrito em 1989)

JEO

Equilíbrio

Estar vivo é ser constante como as pedras, móvel como as águas, seguro como as árvores ou as montanhas, e despejar a mente de tudo o resto, em equilíbrio.

JEO

O corpo sem a alma é como os pés sem o caminho

Dali Les elephants posters

"Les Elephants", por Salvador Dali

Porque não fingir um outro espaço?, um outro riso?, um outro ar que se respire? Porque não um alheamento do mundo objectivo que se vive todos os dias?

Um estado transitório no corpo, uma outra alma, um outro céu.

Os organismos fáceis revigoram nesta amálgama de dúvidas. Os outros..., os outros surpreendem-se com a luz e morrem sob um sol qualquer que descobriram.

Reescrevo uma esperança perdida. E nela me encontro deficientemente renovado. Perco a minha alma, não sinto fluir já o vento que senti quando era minha.

O corpo sem a alma é como os olhos sem a luz ou os pés sem o caminho. Anda à deriva e perde o norte das estrelas. Ganha outro, enganoso, que lhe faz mal à calma do espírito.

É assim o meu corpo nesta hora: destinado à deriva eterna, caso a alma não lhe flua aos olhos.

Fico impaciente com a demora e, enquanto espero, faço das palavras o meu caminho bussolado. Os meus sentidos lêem na folha branca as frases escritas ainda não decalcadas. Mas é mais dos olhos que me queixo, é mais desta paisagem em falta que me lembro, destas ervas e destes passos de areia quando a terra é quase mar, de tudo o que não vejo e sinto que me falta.

Quando dou por mim com as mãos escorrendo as faces - e me lembro daquilo já perdido - revogo o desejo de uma sede perdida e morta.

Porque a sede que matei não é a mesma fome de água que tive ontem. Foi sede passageira que esqueci e, agora submersa num organismo sem alma, de nada lhe vale o prazer que fez sentir a quem dela se saciou.

JEO

A minha hora é uma âncora

Pudera eu o mar nas minhas mãos. Quisera eu, ao menos, sonhá-lo. Todo. Invejo-o porque não cabe em mim, ao contrário do meu corpo que cabe todo nele. Submerso e submisso. Humilde, este corpo.

O oceano-mar é muita água para os meus olhos. É muito espaço. Demasiado, para que eu nele me aventure.

Desmaio, de tanta água. Perco o fôlego e o rumo. A minha caravela deambula saboreada por ondas de todas as marés. As suas velas afagam esta atmosfera marítima e azul onde me perco. Os meus olhos afundam-se na noite do mar como as mãos se afundam nos bolsos do casaco marinheiro.

A minha hora é uma âncora recortando as águas, assente num fundo de areia e conchas. O Sol aqui não borbulha, apenas remete as sombras para mais fundo, em baixo. Ondulantes e intocáveis.

O corpo dos homens é na terra barrenta, assente, sedenta, arada e parturiente das árvores e das flores.

Afago a cara e acordo. Do meu sonho uma lembrança: peixes nadando em 'terra de ninguém'.

JEO

O silêncio veste-se do dia. Por isso não se vê quando é olhado

Oak Arches

Quando o silêncio é verdadeiro, o Mundo vibra. O silêncio faz rodar o Mundo. Estremecer. Fá-lo girar, vezes que ninguém conta, à volta dos astros e de si próprio.

O Universo está cheio de silêncio. A pigmentação escura do astro sulcado de estrelas é a verdadeira cor desse silêncio, visceral destino das nuvens no outro lado do dia, história fantástica na órbita rente dos planetas em volta de todos os sóis que se não vêem, mas que estão lá, aqui, neste Universo que também é o das trevas, do mar e dos homens.

O silêncio veste-se do dia. Por isso não se vê quando é olhado.

O espaço sem som é o mundo despido, de frente para a Lua, nua também, e sem vergonha. Tem vergonha quem ouve os ruídos e sente neles música transparente revelando o seu corpo desprotegido frente ao espaço, cara a cara com as coisas simples.

Respirar o silêncio é estar calado, é ver crescer uma árvore ou uma manhã e acompanhar o movimento dos ramos e da névoa sem tomar fôlego ou fechar os olhos. Ver as coisas crescer é ser as coisas que crescem, é ser como elas, silenciar o corpo e evoluir.

Levantar-se é crescer em silêncio. É respirar sem suor nem esforço. Levantar-se é ser simples como o Sol: dar luz e ser feliz com isso. Sim. Ser feliz. Ser feliz em silêncio, sem vento nem palavras.

E estar parado?

Estar parado também é ser Sol, e dar luz por isso. Porque ser-se Sol é não se mexer. É ser uma pedra no campo à espera da chuva do inverno, e ser uma pedra no campo à espera do calor de julho ou de uma mão que nos lance até mais além, para dentro da água daquele ribeiro, ali ao fundo. Ser parado é ser pedra submersa neste ribeiro ou naquele mar que os livros me ensinam. É ser a geografia toda, sendo pedra, é ser todas as palavras, sendo letra.

O silêncio é isto: uma mão que se fecha esperando os dedos dormentes, para se abrir, de novo, projectando os dígitos todos à luz do dia em que isso aconteceu.

JEO

Pergunto

Para onde olhas quando olhas?

JEO

Porque não vejo

Retrato de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

Persisto em tentar encontrar a palavra que justifique o destino dos homens e das coisas. Porque me inquieta o facto de as árvores não andarem ou de os cães não terem outra linguagem que não o latido ou os homens não terem outro remédio senão esquecer ou lembrar ou rir ou chorar ou ter frio e medo ao mesmo tempo.

Persisto, talvez, porque sou homem e sofro de medos vários, de sede, de calor ou de frio, de cansaço e pasmo. De saudade de ver tudo o que não vejo neste momento.

Em resposta à minha inquietude vejo fechada a porta desta mente humana e limitada. É a porta das dúvidas contínuas que se não abre nunca. A porta dos mistérios insolúveis, guardados em segredo nas arcas de deus, nunca e sempre misericordioso.

A insaciável sede de respostas faz nascer em nós a fé nelas.

Pergunto-me: “Saber uma árvore não será sabê-las todas?, quem olha para ela não vê tronco, ramos, folhas e pássaros nelas? Haverá, assim sendo, sempre, um tronco em cada árvore, ramos, folhas e pássaros que nelas fazem ninho”.

Com isto fico satisfeito.

Mas o que mais me perturba é a vinda da noite. Quando cai sobre os meus olhos, ela confunde não só as árvores com as árvores, mas as árvores com a montanha, com as flores, as pedras, os caminhos, os ribeiros. Então, quando é noite, tudo é árvores, tudo é flores e riacho ao mesmo tempo. Não posso olhar o escuro e dizer: “Ali está a árvore com folhas, tronco, pássaros”. Não posso. Porque não vejo.

O melhor que faço é deitar-me e viver a luz nos meus sonhos. Que são sempre de dia. Aí vejo tudo, e fico satisfeito com o mundo e com as coisas. JEO