Porque não vejo

Retrato de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

Persisto em tentar encontrar a palavra que justifique o destino dos homens e das coisas. Porque me inquieta o facto de as árvores não andarem ou de os cães não terem outra linguagem que não o latido ou os homens não terem outro remédio senão esquecer ou lembrar ou rir ou chorar ou ter frio e medo ao mesmo tempo.

Persisto, talvez, porque sou homem e sofro de medos vários, de sede, de calor ou de frio, de cansaço e pasmo. De saudade de ver tudo o que não vejo neste momento.

Em resposta à minha inquietude vejo fechada a porta desta mente humana e limitada. É a porta das dúvidas contínuas que se não abre nunca. A porta dos mistérios insolúveis, guardados em segredo nas arcas de deus, nunca e sempre misericordioso.

A insaciável sede de respostas faz nascer em nós a fé nelas.

Pergunto-me: “Saber uma árvore não será sabê-las todas?, quem olha para ela não vê tronco, ramos, folhas e pássaros nelas? Haverá, assim sendo, sempre, um tronco em cada árvore, ramos, folhas e pássaros que nelas fazem ninho”.

Com isto fico satisfeito.

Mas o que mais me perturba é a vinda da noite. Quando cai sobre os meus olhos, ela confunde não só as árvores com as árvores, mas as árvores com a montanha, com as flores, as pedras, os caminhos, os ribeiros. Então, quando é noite, tudo é árvores, tudo é flores e riacho ao mesmo tempo. Não posso olhar o escuro e dizer: “Ali está a árvore com folhas, tronco, pássaros”. Não posso. Porque não vejo.

O melhor que faço é deitar-me e viver a luz nos meus sonhos. Que são sempre de dia. Aí vejo tudo, e fico satisfeito com o mundo e com as coisas. JEO

2 comentários:

  1. Todas as inquietações na busca do "destino dos homens e das coisas" se apaziguam com a simplicidade que Ramos Rosa (contemplando a quietude de um imenso nenúfar) traduziu ao dizer: “Não posso adiar o amor para outro século".

    Salò

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