A uma certa tarde

A uma certa tarde, não espero. Neste recanto aquecido da casa, não descanso. Moribundeio-me. Desvivo. Irrespiro.

Para onde páro, se não vou?

Com quantos dedos terei de dizer de novo que estou mais cansado que ontem?

Estou mais cansado que ontem.

Quantos dedos foram? Distraído, não me dou conta, sequer, das minhas mãos.

(Texto escrito em Janeiro de 1997)

JEO

Todas as dores menos esta

(c) Paolo Pellegrin/Magnum Photos 2003

Desejaria esvaziar-me do mundo, voltar ao zero de onde procedi. Ser, de novo, raiz profunda do fio de vida que me deu origem.

Desejaria não ser, por uma vez, quem e o que sou hoje e agora.

Desejaria não querer nada para mim, desactivar-me. Para voltar ao grau nulo do que fui.

Não desejar é o meu maior desejo. Mas, inoportuna, a vontade de querer já não me larga. Mantenho-me dentro de mim. E nunca me hei-de separar deste corpo que me transporta atormentado. Desejar, assim, o que seja é querer possuir o que não há, sentir o que não se dá, engolir coisa que nunca se comeu.

Dói-me a barriga. Melhor seria que a dor fosse, ao menos, outra. Qualquer. Todas as dores menos esta. Ou nenhuma.

Mas, afinal, o que me peço? Para que multiplico, assim, sem substância? Porque me dou a estes pensamentos?

Desejaria não desejar absolutamente nada. Dizer não. Desdizer-me, desviver, desacordar. O que me digo? Não quero ouvir! Quando me apago?

(Texto escrito em Novembro de 1996)

JEO

Tatuagem

 Healey - Circular Rhythms I posters Healey - Circular Rhythms II posters

(c) Healey - Circular Rhythms I e II

Este não é o meu círculo nem o meu desejo desejado. O risco que tracei na areia não é de agora. Anda, desaparecido e intacto, pelo mundo. Procura novos desejos e perde-se em outros chãos que não o meu.

Desenhei-te a lápis no meu corpo. Fiquei ferido de uma dor que nem sequer sentia. Porque me fugiste, logo ao primeiro banho.

Pensei - Então porque me lavo, se te deixo, assim, escrita e apagada, a pairar sobre o meu dorso?

JEO

Sinto vertigens ao pensar que cairia

Imagino-me inclinado no parapeito do mundo, pronto a saltar para lugar nenhum. Por quanto tempo se prolongaria esse pulo, essa queda? Onde me levaria essa viagem nocturna e estelar? Quem seria eu ao aportar ao lugar onde chegasse? Se chegasse?

JEO

Dez Encantos Sobre Saltam A Pele

A. Aubrey Bodine - High Rise Construction(c. 1950) (Large) posters

(c) A. Aubrey Bodine - High Rise Construction (1950)

I.

Esvaem-se no tempo pedaços de um corpo

Esvaem-se(sem mácula, sopros de um vento indefinido)

no tempo(reaberto sobre a planície calma, desfeita em sopros)

pedaços(de feno. Sobrevoam-na almas. Penadas. E uma só)

de um corpo(feita, qual estrela aberta rente aos olhos.)

Esvaem-se no tempo pedaços de um corpo

II.

Por onde caminhamos quando os olhos se fecham

Por onde(Espreitamos, a espaços, curtas pausas. Cintila um luz.)

caminhamos(Abertos, os olhos resguardam-se. Intensidade.)

quando os olhos se(Descobrem, desvendam-se em magias plenas)

se fecham(visitando de novo mais um Inverno claro.)

Por onde caminhamos quando os olhos se fecham

III.

Corre um vento forte sobre a minha cabeça

Corre(Livre, a consciência desenganada do mundo)

um vento(frio. Sobressai na pele. Resguardo-me do medo.)

sobre(Tudo avança em direcção a essa linha invisível, finita,)

a minha cabeça(dormente, que se revolta, esquecida do espaço.)

Corre um vento forte sobre a minha cabeça

IV.

A inconsciência faz-se dos medos dos outros

A inconsciência(Levanta-se, manhã clara, sobre a cidade.)

faz-se dos(Escombros. Despertam também para esse dia)

medos(de calores e vento. Faz Verão. Espera por pedaços de luz)

dos outros(mais fortes que a intensa fraqueza da noite.)

A inconsciência faz-se do medo dos outros

V.

Quando os olhos falam do mar crescem muros em terra

Quando os olhos(São seres abertos na distância. Acorrem passados vários.)

falam do mar,(Fiéis e profundos. Saem do místico novelo dos dias)

crescem muros(renascidos de uma cinza volátil, despregada,)

em terra(como se fossem chama e luz e fogo e quente.)

Quando os olhos falam do mar, crescem muros em terra

VI.

Toco-te. E o teu rosto é o mundo todo desejado

Toco-te.(A uma hora qualquer. Encontro o dia)

E o teu rosto é(marejado, feito de calor. O corpo desfaz-se em carícias)

o mundo(de encontro ao solo aquecido das mãos.)

todo desejado(, o amanhã será hoje à mesma hora.)

Toco-te. E o teu rosto é o mundo todo desejado

VII.

Prefiro a chuva às flores colhidas

Prefiro(Saborear cada novo fôlego que me ofereces,)

a chuva(intenso mar. Corpos caídos, rentes,)

às flores(verdes, quando se acabam os trabalhos do campo)

colhidas(na pradaria fértil, oferecida e calma.)

Prefiro a chuva às flores colhidas

VIII.

Chega-te mais perto. Vem

Chega-te(Preferir o fruto que colheste? Retalhar,)

mais(a fundo, cada pedaço de verde. Solta-se um gemido)

perto.(Demasiado próximo. Estridente, angustiado,)

Vem(ao meu encontro. Toca-me sem arrepio.)

Chega-te mais perto. Vem

IX.

Para onde olhas quando olhas?

Para(Quem são estes dias? Passas)

onde olhas(sempre que te miro. O tempo)

quando(acaba, resvala por entre os dedos.)

olhas(e é como se a noite acordasse agora.)

Para onde olhas quando olhas?

X.

Sempre que respiras o transe do meu corpo

Sempre(Renegado por carícias, perco-te em tremores)

que respiras(mansamente, fora do meu beijo coagulado em tua face,)

o transe do(mundo inteiro, miragem arquejante do teu sono.)

meu corpo(E minhas mãos sobrevivem à ausência. Fracos de fome.)

Sempre que respiras o transe do meu corpo

JEO

De tudo o mais faça-se pó

Uma luz morna irrompe sobre as costas da floresta. Um ganir de cão sobressalta pombas esquecidas de deus. Miserável crime. O abandono. Respirar nessa hora é cumprir o mais puro egoísmo. É ser-se deus também. Matem-se as pombas. De que mais nos socorremos quando o transe, a angústia e o medo nos agrilhoam? À morte. À morte dos outros. Massacre! Desfaçam-se todas as pedras; amontoem-se os escombros e juntem-se-lhe os ratos mortos. Restos. Despejem-se em qualquer lugar os despojos dessa fúria incontida, moribunda. Deus há-de ser testemunha dessa festa. De tudo o mais faça-se pó.

(Texto escrito em Março de 2003)

JEO