Memórias

(c) Bruce Davidson, Hastings, 1960, "Children playing on rocks"

Lembras-te? De quando fazíamos os pés à estrada, ao pó e à lama, só para ver passar a água do ribeiro de Água d'Alto? De quando uma escádia nos magoava os dedos apenas porque queríamos experimentar a textura de um pedaço de madeira esquecido? De quando fumávamos uma palhinha à lareira, por inveja de ver o prazer na cara dos adultos que o faziam com mata-ratos? De quando nos batíamos só porque me passavas rasteiras no pelado da escola? De quando os "cóbóis" da aldeia nos destruíram a cabana de "índios" que contruímos com varas de mimosa? Ali, junto ao campo de futebol? De quando íamos à lenha?, às pinhas? Lembras-te? De que te lembras, afinal? JEO

Parabéns

"Agora que já sinto a gravidade dos quarenta, espero que nada se me descaia demais e que o charme e a ternura me amparem" MCMO

A dois

Desfazem-se num beijo os namorados

entrelaçam-se as mãos constantemente

conversam em sussuro amadamente

enquanto um velho ressona do seu lado.

~

Entreolham-se e vibram com vontade

murmurando amores docemente

e se cada olhar é tido como urgente

mais urgente ainda é a ansiedade.

~

Ela afaga-lhe os dedos sem saber

ele recebe carícias mansamente

ela sorri-lhe com olhos de serpente

ele toma-os como toques de mulher.

~

Cada um é objecto de um desejo

que se pediu tão sofregamente

quanto a sede que se bebe de repente

por um copo sobre o qual se dá um beijo.

~

Desconfiam dos olhares, do sorriso

que outros lançam com tez impaciente

e de pronto se escondem por vergonha ardente

em abraços que lhes tolhem o desejo.

JEO

Um ano

(c) Peter Goldbeck "Angel cloud with rainbow", 2001

Faz por estes dias um ano que me lancei na alimentação deste blog. Não fiz por alardear a sua existência. Por via disso, talvez, contam-se por escassíssimas dezenas os comentários que nele foram feitos por terceiros. Mas isto não é sintoma de nada. A falta de participação pode mesmo decorrer - e nisso acredito - do já incontável número de blogs que entretanto nasceram, mais vigorosos, activos e apelativos que o meu. Deixo aqui um abraço a todos quantos, alguma vez, participaram no Fogo Fátuo, comentando o que foi sendo escrito. Da minha parte, regressarei ao suporte de papel. Se alguém sentir a perda, que me escreva para casa.

P.S. À MagnumPhotos, onde fui beber a maioria das imagens que lancei às chamas deste Fogo, o meu agradecimento.

Abraços

JEO

Sem mais

(c) Alex Majoli, Magnum Photos, in "Grécia, Leros, Mental Hospital", 1994

A minha posse é não ter nada. O que tenho é o que sou e o que quero ser. Eu e mais ninguém. E esta cor ninguém a quer e ninguém a dá. Por isso, por tudo isso, prefiro as palavras sem cor, que ninguém as conheça, sequer o nome. Nem o corpo, as formas ou a tonalidade do cabelo. Prefiro, sem mais, que o espaço ocupado das coisas tenha a cor que eu quiser delas e, querendo-as assim, e aceitando-as, que eu seja o que elas desejarem de mim. Sem mais.

(Texto escrito em 1989)

JEO

Mas, afinal...

© Josef Koudelka/Magnum Photos, in "Gipsies", Jarabina, Slovakia, 1963

Mas, afinal, o que me peço? Para que me multiplico, assim, sem substância? Porque me dou a estes pensamentos?

JEO

É para amanhã

© Bruno Barbey/Magnum Photos "On your bike", s/d

Sobra-me tempo. Falta-me o espaço. Ou será que se invertem os factores? O que me falta? Que se vaze a plenitude ou que se preencha o vazio? Oh, demasiadas, terrenas, interrogações!

JEO

Destinos

(c) Joseph Koudelka, Irlanda, 1978, Magnum Photos

Balança o teu corpo em ondas de seara

para que tudo volte

ao que já era.

JEO

Desesperadamente

Fotocomposición de Alejandro Mascarúa. Foto de Stephan Lupino

(c) Revista "Etcétera" nº 400, Espanha, s/d

São muitos os dias, senhor. São mais numerosas ainda as horas, os minutos. E eu continuo o meu caminho. Tortuoso, em dias cinzentos, menos mau quando acordo e me faz sol na cara. Pesam-me os próprios dedos. Desfaleço.

Toquem a rebate. Porque urge salvar alguém. E esse alguém sou eu.

De que me serve a sensualidade? As minhas pernas? Os meus maneios, as loções, todo o meu jeito? Para ser quem sou, assim, desesperadamente?

JEO

A água és tu

(c) www.kaibab.org

O que tu vês nas pupilas dos meus olhos, quando estão vermelhos, são sangue coalhado, concentrado, apertado. Mais espesso que o normal. Nada mais. Para lá desse sangue há um leito de rio onde o rio não está. Porque a água secou.

A água és tu.

JEO

(Texto escrito em Julho de 2001)

Multiplicado por mil

Entrego-me ao mundo preso ao teu dorso. Dás-me rédea solta e, liberto da fuligem dos homens, dou saltos maiores que montanhas. Deixa-me reinar pelos campos contigo.

Faz-me sobrevoar os píncaros mais altos do que sinto, do que vejo e procuro.

Faz-me querer-te mais do que te quero. Multiplica por mil tudo o que sinto.

JEO

Acordados para dentro

(c) Paolo Pellegrin, Magnum Photos, "Funeral Muçulmano", Xining (China), s/d

Sentam-se a meu lado. Pedem-me licença para passar por mim. Vejo-os e não os conheço. Vivem à minha frente e nunca lhes disse o que pensava, sobre coisa nenhuma. Solitários, eles e eu. Acompanhados de todos e de ninguém. Acordados para dentro. Todos e cada um de nós.

Para dentro. Sem saída.

E isto não acaba. Antes se prolonga na infinidade absoluta dos dias e das noites. Na solidão contínua e interminável das horas.

Este império do tempo é quem nos prende, nos imola e nos afasta de quem somos. Mesmo quando tudo o que pretendemos é a fuga de nós mesmos.

Mas não há fuga possível. Eis o mal maior. Porque a prisão está em todo o lado e partilha dos mesmos passos que damos ao andar, sempre à deriva. (Texto escrito em 1996)

JEO

Da fé

(c) Jonas Bendiksen, Uzbequistão, Vale de Ferghana, 2002

A religião sempre foi a ferida, não a ligadura.

JEO

Carta

Stewart, Monica - The Letter posters

(c) Monica Stewart, The Letter, s/d

Escrevo-te a partir do ano passado. Tenho sujos os pés, do caminho que percorri. Feridas. Marcas várias lembram-me que vivi por esses dias.

Escrevo sem saber o teu nome. Assim prefiro. Saber-te desconhecida. Desidentificada. Feita da espuma dos mares.

Escrevo-te porque penso não voltar a ver-te. Ainda que o contrário seja o meu maior desejo. Perturbante? Porquê se foste tu quem se afastou para longe?

Continuo. Em busca de um sal mais grosso que me vede estas lágrimas de água. Percebes? Fala! Diz qualquer coisa. Não te retraias no silêncio. Não te quero ouvir calada. Não te quero.

JEO

Perna de pau

(c) John Vink, Magnum Photos. Anlong Veng (território dos Khmer Vermelhos), 1999

O povo reunido no adro da igreja já não suporta a espera. De súbito, a vaca da Quinta irrompe pela arena improvisada. António salta, corajoso. «Eh, toiro». Os espectadores deliram com o arrojo, muito antes da primeira investida.

Desleixado, António distrai-se e uma cornada certeira fá-lo perder-se do chão. Na queda, uma das pernas solta-se do eixo dos ossos, retorcida. A massa popular cai sobre o animal e tenta socorrer o valeroso azarado.

Mas, com uma calma de anjo, António refreia os receios da turba: «Só preciso de uma chave de parafusos. É que a prótese desenroscou-se».

JEO

A tostadeira

(c) Hiroji Kubota, Magnum Photos. Xinjiang, China,1999. "Vendedor de pão no mercado de Kashgar"

Prostrado sobre o mecanismo da tostadeira, o velho coça a cabeça. A maquineta, tão velha quanto ele, desengonçara-se de tal forma que deixara de servir para o que quer que fosse. «Raios partam esta coisa», arranca, do fundo de si.

Vagaroso, gira alguns parafusos da engrenagem, bastante complicada, mas a broeta das tostas mantém-se silenciosa. Impecavelmente estragada. «Estás em greve de velhice», diz.

A máquina, afinal, espelha a imagem de quem sempre a comandou. O homem, vesgo de cansaço, decide desligar a ficha tripla.

O enterro de ambos foi simples. Entre amigos: máquinas com avaria e velhos cansados da vida.

JEO

Cão de ló

(c) Antoine D'Agata, Magnum Photos "Mala Noche 1998"

Preso nos arbustos, Joca faz o que pode para se livrar do peso. Fugiu do canil mas o tempo de reclusão não lhe tolheu o instinto de liberdade. A trela pesa-lhe agora como nunca. Quer libertar-se dela a todo o custo.

Enquanto se debate com balanços fortes de pescoço, uma linda cocker atravessa-se-lhe ao caminho. «Cioso», Joca debate-se contra a coleira de aço inoxidável, que se enrola cada vez mais ao tufo de arbustos.

A bichana, distraída, balança-se rente ao pêlo de Joca. Terrível. Falta-lhe o ar. Sufoca. Morre. «Béu», atira a cadelita, num ladrar de fêmea vivida.

JEO

Intervalo

(c) Martine Frank/Magnum Photos, s/t, 2002

Manuel invadiu a sala das máquinas onde Maria, sua mulher e esposa, enformava botas e sapatos. «Vem comigo. Vem, não digas nada» Segurou-lhe na mão esquerda e puxou-a sem magoar para fora do pavilhão. Correram, em silêncio, com o sorriso apertado, em direcção ao mundo.

As outras mulheres desviaram os olhos do serviço, mas logo voltaram à tarefa. Distraídas do amor.

O casalzinho molhou-se na chuva de Maio e deu-se abraços longos. Outros beijos. Maria olhou a cara bêbeda de felicidade do homem seu esposo, e perguntou-lhe, sabedora da resposta: «A que horas voltas ao trabalho?»

JEO

Porque não te mostras?

(c) Ferdinando Scianna, Brooklin, NYC, 1985/Magnum

É manhã e não te ouvi ainda qualquer passo. Por onde andas, que me atormenta o teu silêncio?

Porque não te mostras?

Serás, também tu, página em branco?

JEO

Envelhecemos brutos

Perde-se tempo com nada. Nada se aprende. Nada nos bate nos olhos. Cegos, assim, e voluntários, não chegamos, sequer a descobrir-nos.

Se o tempo nos foge, porque não corremos atrás dele? Porque nos deixamos perder continuamente?

Se assim é, continuaremos, para sempre, derrotados. Apátridas de nós mesmos, corpos devolutos sobre quem até o pó se importa de assentar.

Envelhecemos brutos. E não nos damos conta de que nada vale se fecharmos os olhos sem querer - sem ter a mínima vontade - voltar a tê-los abertos por um pouco mais de tempo.

Um pouco mais, apenas.

JEO

Regresso

De volta. Sempre de volta. A algum lugar. Ao princípio? A que arranque visceral regressei? Sou nascido ou renascido? Mas que me importa? É sempre bom voltar. JEO

Até ao fundo

(c) Rene Burri, La Jolla, 1979/Magnum Photos

Faço, de quando em vez, alguns silêncios. Finjo-me sombra, calado. No que é meu, apenas as mãos são liberdade. Os meus passos não são movimento. Antes fogem de si próprios, como a água do rio que ensaia sempre escapar-se do seu leito. Ao fundo, eu sou a pedra ao fundo desse rio. Sou o que resta das margens. A sombra, sim, a sombra quieta de mim mesmo. E, quando passo, não me vês, nem eu a ti. E, se nos trocarmos olhares, será engano por certo. Sim. Será engano.

JEO

De volta (ainda aqui)

Partir e voltar. Saber e ignorar. Abrir. Fechar. Em que momento te encontras? Sabes, sem dúdiva, defini-lo? A quem te abraças, o que dizes? Percebeste as tuas próprias palavras? E às outras, àquelas que não escolheste nessa hora, porque as abandonaste? Voltar e partir. Ignorar e saber. Já te encontraste? Talvez nunca. Talvez a toda a hora.

JEO

Os meus lugares

(c) Josef Koudelka, Paris, 1973/Magnum Photos

Sento-me sobre um pedaço de cidade. Estou num dos vértices do mundo. E não caio. O meu equilíbrio é estar sentado. E ver que tudo é descanso à minha volta.

Ocupo o meu espaço a cada instante. Tenho o meu lugar marcado em toda a parte. Porque sou eu quem faz daqui este lugar, quem se comove com ele, quem sobre ele descansa e perdoa o que quiser.

Os meus lugares são um de cada vez. E nunca mais são quando não estou. Os meus lugares são as pagarens trémulas do meu corpo. São suspiros de Sol quando é manhã. São vagas de mar que se perdem com o baque de mais uma onda, neste mundo de ondas incontáveis.

JEO