Perna de pau

(c) John Vink, Magnum Photos. Anlong Veng (território dos Khmer Vermelhos), 1999

O povo reunido no adro da igreja já não suporta a espera. De súbito, a vaca da Quinta irrompe pela arena improvisada. António salta, corajoso. «Eh, toiro». Os espectadores deliram com o arrojo, muito antes da primeira investida.

Desleixado, António distrai-se e uma cornada certeira fá-lo perder-se do chão. Na queda, uma das pernas solta-se do eixo dos ossos, retorcida. A massa popular cai sobre o animal e tenta socorrer o valeroso azarado.

Mas, com uma calma de anjo, António refreia os receios da turba: «Só preciso de uma chave de parafusos. É que a prótese desenroscou-se».

JEO

A tostadeira

(c) Hiroji Kubota, Magnum Photos. Xinjiang, China,1999. "Vendedor de pão no mercado de Kashgar"

Prostrado sobre o mecanismo da tostadeira, o velho coça a cabeça. A maquineta, tão velha quanto ele, desengonçara-se de tal forma que deixara de servir para o que quer que fosse. «Raios partam esta coisa», arranca, do fundo de si.

Vagaroso, gira alguns parafusos da engrenagem, bastante complicada, mas a broeta das tostas mantém-se silenciosa. Impecavelmente estragada. «Estás em greve de velhice», diz.

A máquina, afinal, espelha a imagem de quem sempre a comandou. O homem, vesgo de cansaço, decide desligar a ficha tripla.

O enterro de ambos foi simples. Entre amigos: máquinas com avaria e velhos cansados da vida.

JEO

Cão de ló

(c) Antoine D'Agata, Magnum Photos "Mala Noche 1998"

Preso nos arbustos, Joca faz o que pode para se livrar do peso. Fugiu do canil mas o tempo de reclusão não lhe tolheu o instinto de liberdade. A trela pesa-lhe agora como nunca. Quer libertar-se dela a todo o custo.

Enquanto se debate com balanços fortes de pescoço, uma linda cocker atravessa-se-lhe ao caminho. «Cioso», Joca debate-se contra a coleira de aço inoxidável, que se enrola cada vez mais ao tufo de arbustos.

A bichana, distraída, balança-se rente ao pêlo de Joca. Terrível. Falta-lhe o ar. Sufoca. Morre. «Béu», atira a cadelita, num ladrar de fêmea vivida.

JEO

Intervalo

(c) Martine Frank/Magnum Photos, s/t, 2002

Manuel invadiu a sala das máquinas onde Maria, sua mulher e esposa, enformava botas e sapatos. «Vem comigo. Vem, não digas nada» Segurou-lhe na mão esquerda e puxou-a sem magoar para fora do pavilhão. Correram, em silêncio, com o sorriso apertado, em direcção ao mundo.

As outras mulheres desviaram os olhos do serviço, mas logo voltaram à tarefa. Distraídas do amor.

O casalzinho molhou-se na chuva de Maio e deu-se abraços longos. Outros beijos. Maria olhou a cara bêbeda de felicidade do homem seu esposo, e perguntou-lhe, sabedora da resposta: «A que horas voltas ao trabalho?»

JEO