Multiplicado por mil

Entrego-me ao mundo preso ao teu dorso. Dás-me rédea solta e, liberto da fuligem dos homens, dou saltos maiores que montanhas. Deixa-me reinar pelos campos contigo.

Faz-me sobrevoar os píncaros mais altos do que sinto, do que vejo e procuro.

Faz-me querer-te mais do que te quero. Multiplica por mil tudo o que sinto.

JEO

Acordados para dentro

(c) Paolo Pellegrin, Magnum Photos, "Funeral Muçulmano", Xining (China), s/d

Sentam-se a meu lado. Pedem-me licença para passar por mim. Vejo-os e não os conheço. Vivem à minha frente e nunca lhes disse o que pensava, sobre coisa nenhuma. Solitários, eles e eu. Acompanhados de todos e de ninguém. Acordados para dentro. Todos e cada um de nós.

Para dentro. Sem saída.

E isto não acaba. Antes se prolonga na infinidade absoluta dos dias e das noites. Na solidão contínua e interminável das horas.

Este império do tempo é quem nos prende, nos imola e nos afasta de quem somos. Mesmo quando tudo o que pretendemos é a fuga de nós mesmos.

Mas não há fuga possível. Eis o mal maior. Porque a prisão está em todo o lado e partilha dos mesmos passos que damos ao andar, sempre à deriva. (Texto escrito em 1996)

JEO

Da fé

(c) Jonas Bendiksen, Uzbequistão, Vale de Ferghana, 2002

A religião sempre foi a ferida, não a ligadura.

JEO

Carta

Stewart, Monica - The Letter posters

(c) Monica Stewart, The Letter, s/d

Escrevo-te a partir do ano passado. Tenho sujos os pés, do caminho que percorri. Feridas. Marcas várias lembram-me que vivi por esses dias.

Escrevo sem saber o teu nome. Assim prefiro. Saber-te desconhecida. Desidentificada. Feita da espuma dos mares.

Escrevo-te porque penso não voltar a ver-te. Ainda que o contrário seja o meu maior desejo. Perturbante? Porquê se foste tu quem se afastou para longe?

Continuo. Em busca de um sal mais grosso que me vede estas lágrimas de água. Percebes? Fala! Diz qualquer coisa. Não te retraias no silêncio. Não te quero ouvir calada. Não te quero.

JEO