Ó Lídia, dá-me aí dois euros e quarenta

Dói-me a ponta do indicador direito. E não lhe ligo. Negligencio uma parte de mim. Não a penso. Apenas sinto. De vez em quando. É como se fosse uma ausência sempre presente. Uma pedra no fundo da bota, que teima em não se mexer dali. Filha da mãe. Rai´s parta a merda da pedra. E vai-se a consciência nestas coisas. Saltimbanca como se disso dependesse o nascer do sol. E não se faz mais nada que valha. Não. Não se olha para dentro. Não se lê. Nem se respira. Deixa-se o tempo fugir. A qualquer hora. Sem sentir falta. Para quê? Consciência dói, minino. Custa supórtá. É indjigésta e sufócântxi. Ce n´est pas vrai? Compra-se a preço de saldo de vez em quando. Mas aquilo gasta-se muito e perde o sabor também. Ai. Que se aquilo não tivesse um cheirinho ia à loja do lado e comprava trinta daqueles redondinhos. Dos outros. Tá a ver? Daqueles que parece que fazem crescer borbulhas a algumas pessoas. Mas a mim não. Ó Lídia, querida, dá aí dois euros e quarenta, sim, desses aí de baixo.
Foto: (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Lisboa, Abril, 2008

Sozinhos, assim como somos

Lindo. Lindo. Muito bem. Olha, é isso mesmo. Agora sai daí. Deixa-me entrar na banheira. É minha a vez. Mas que prazer inominável é esse? Mas que é da vergonha. Do pudor? Da carroça e da criada? Que é desse tempo. Desse nevoeiro de consciências morto jovem, graças a deus. Sebastião come tudo, tudo. Tudo. E quem o espera? Ai é verdade. Ninguém. E todos, pronto. Não nos demos autorização de ter saudades? Ou de não carecer de um fantasma ao qual chamemos pai? À bússola que nos inventámos? Portugueses! Ao nosso encontro? A sermos sozinhos, assim como somos. E mai nada? Lindo, lindo era seres azul e eu também. E andarmos por aí sem nos mexermos. E soprarmos nas orelhas dos outros sem sermos notados. E matar! E matar qualquer coisita que esteja estragada, pronto. Um bicho qualquer. Uma formiga, vá. É pequenita. E não sente a dor. Não é?
Foto: (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Soalheira, Fundão, 2008

Verde alface

Um aperto ligeiro e várias rugas cingidas à beira do cimo dos olhos. É esse o prazer que o prazer da escrita me dá. E sinto-me bem. A cada respirar parece acontecer um sorriso inevitado. Inventado. Uma nova torrente de sal sobre a língua. E depois o gole de água fresca e limpa que se sorve. E o respirar satisfeito. Da saúde. A confiança nunca me faltou. Embora pareça que a não dê a ver. Ah, o calor. Eh, pá. Agora o que ia mêmo bem era uma cervejinha. Eia. Pá. N´era? E um beijo. Um mal-me-quer azul clarinho. Ou branco, pronto. Não há azul. Compreendo. A natureza não nos deu tudo. Uns tons de branco e um pouco de verde, verde alface. Gostas?
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Largo Camilo Castelo Branco, Lisboa, 2008

O extremo duche da alma?

E eu? Hã? E que há-de ser feito de mim quando as minhas 17 e 23 se aproximarem? Que farei? Rezar? Maltratar os passarinhos? Bah. Arghh. Nojo incandescente. Morrerei assim mesmo. Aqui, sentado a uma escrivaninha qualquer. Com dor nas costas e um picar nos pulsos que me irrita. Ai. Doutor, o que me receita nesta hora? A extrema-unção? O extremo duche da alma? Mas diga-me, doutor, de que padeço. Que me dói, aqui, assim aqui, aqui, debaixo do baço. Do braço. Faltam-me abraços. Esse, sim. É o meu mal.

O absurdo. Absurdo O.

Mas, afinal, de que é que estamos à espera? E por que nos penitenciamos? E rezamos, temendo o fundo eterno de um poço imaginado, mas fumegante, borbulhante, aviltante, angustiante. O medo. O pecado. A fórmula exacta do erro. Às 17 e 23. A uma hora qualquer. O temor mais profundo de deixar escorregar das mãos a perfeição que nem sequer se entende. O pudor de ter medo. De não ter fé. Esgrimo aqui palavras insensatas, por certo, para muitos. Mas esses serão os incautos detentores de uma verdade que nunca existiu nem nunca existirá. Vou jantar. Uma comichão imensa. E quê? Não se coça? Onde é que, afinal, mora esta verdade? Mas de que piolhos imberbes posso ter a certeza da existência? Dois dedos de ser. Uma lambada de cheiros e perfumes. Meio cambiante de nada. O absurdo. Absurdo O. Afasto-me um pouco. E tudo muda. Tudo ou nada. Assim, talvez. Talvez um pouco. Muito. E quem me afaga? Que me corrói nessa desgraça minha que é ver os outros apodrecer, iguais a mim? Bem que me afasto. De nada serve. Fica maior o pouco que restava. Ganha corpo o fôlego moribundo. Vibra de cor esse preto-e-branco de um segundo. A eternidade. O impensável acontecido. O fim do mundo. O fim de mim.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Campanhã, Porto, 2008

São essas as regras

Olha-me só para estas rugas. Tão novo. Riscos nas costas da mão. Serão do sol? Da passagem do tempo. Da viagem. Sim. Desse contínuo avanço rente ao corpo. Raso à pele. Tantos dias. E tão poucos. Matraquilho do passado e do futuro. Velho corpo no presente. Olha para ti. Que vês a mais que eu não vislumbre? Distraído? Vá lá. Senta-te direito e reconhece que também tu perdes o jogo. No final perdê-lo-ás. São essas as regras. O contrato que duas vidas te impuseram. E tu? Por aqui ainda? Até quando? Olha bem as costas da tua mão esquerda. E da outra. Vá, responde: quem és?

Alcoolemia-consciência

Depois acordaste-me e eu, bêbado de sonolências, perdi a cada respirar cada lembrança. Onde estivera? Tu me contarás. Sim, porque a tua história é a minha. Afinal, o universo é uno. Inverso. Um. Perdi toda a memória. Já me acontecia antes. Mas agora era mais grave. Soprei no balão da inconsciência e deu 1,21 gramas/litro de memórias. O meu estado de alcoolemia-consciência deu contra-ordenação. Fui condenado. Preferi pagar. Livrei-me. Mas não de mim. Que esse, sim, era o castigo mais-que-perfeito. Você vai ser sentenciado a livrar-se o seu corpo. A pagar 233 euros de multa. A viver sozinho. E a ter um emprego como deve ser. Disse o juiz. E eu, sem dinheiro para recursos, emigrei à força do meu corpo. Estrangeirei-me. Sou mais feliz agora. Ganho mais. E falo francês.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Lisboa, 2008