Mar em ondas

A minha Mãe


Sai-me do corpo uma ténue lembrança da cidade
Fujo dali como quem pode alcançar a sapiência
Deixando para trás a altivez, toda a ciência
Diluindo nesta coisa de estar longe a humanidade.

Vim reconhecer-me numa praia pejada de humidade
Onde não há vozes que se oiçam, só as ondas
E essas dizem: “Encontra-te por dentro, não te escondas
Do que sempre foste desde a mais pequena idade”.

Da musgosa memória dos arquivos não me fio
Nem da pura lã virgem das minhas camisolas
Agora rente ao mar as breves ondas são corolas
Molhando as lombadas dos livros pelo estio.



As quatro margens do rio

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Quero uma janela à minha porta
um halo de luz
determinado
quatro margens de um rio envidraçado
quero com calma
perceber a minha cruz.

Quero uma montanha deitada
à minha sombra
num jardim desta cidade
que beba água do rio emoldurado
quero o vergão da palavra ronronada
pedindo sono ao colo que se dobra.

Quero o grito verde dos pinhais
assobiado no escuro do medo
dos silvos e dos troncos
incendiado no verão dos condenados
quero a chama acesa desse inverno
carvão soprado, a ponta do meu dedo.

Quero a distância de um só salto
a lúgubre conquista
no raso campo da batalha justa
seara de corpos trespassados
quero a vitória cantad’à janela
e que nenhum dos quatro ventos lhe resista.
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Gente, mar e pedra

Foto: J.E.O., Santa Apolónia, Lisboa, Março de 2011
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Uma cidade é pedra
resolve os seus vícios abraçando o frio
faz concha das mãos
enquanto atropela as almas
nela vivas poisando.

Uma cidade é mar
quando resvala para o fundo
e bebe às golfadas
o ar já rarefeito do dia
depressa cansado da andança astral.

Uma cidade é gente
pisando sempre caminho conhecido
embalada na surpresa de um beco
nunca saciada de vícios e desmandos
rezando à pressa com os joelhos no futuro.

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Tormento

Foto: J.E.O., Soalheira, Abril de 2011


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Desconfiar da flor para a qual se olha
É um tormento
Quando ela é verdadeira e se consegue.
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O amor, esse pecado

"O amor, esse pecado". Foto do original

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Um só momento me encanta
um só momento,
estrela da tarde,
                    o abraço

                    o beijo

                    a manta

                    o respirar salgado
                    o balanço
                    o formigueiro faminto do desejo que não cansa.

O amor, esse pecado,
                    meu bem,
                    é o momento.
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