Apeteceu-me recordar estas palavras. Ponto.
Desinfectadas almas

Amarrar esse escritório de escombros e gavetas é o que é preciso que se faça. Atacar. Desarrumar a turba feita de urros, desfeita de sentido. Adormecer sem ordem nem sossego. Volúpia celeste, incandescente e fria. Sussurrante. Penetrada. Renascer. Vede-vos. Ofegantes desse exercício de marear corpos e peles. Miseráveis carícias. Impenetráveis cadáveres de prazer. Frígidas frigideiras. Mingau. Pó de talco. Arroz sem bicho. Limpinhos esses corpos. Desinfectadas almas.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Tricolori, Lisboa, Junho, 2008
Elefante. Leão. Gibóia. Joaquim.

Menina Mariana telefonou, diz a criada. Que sim. Que deixe mensagem. Mas se já ligou... Que para a próxima, se próxima houver, digo eu, que ouvi toda a conversa. Esse ocupar oco do tempo e do espaço. Esse fio de navalha romba que nada corta, que nada tira e nada dá. Esse vazio. De que húmus é esta gente feita? Procurará um sentido para a vida? Mas, que raios... Que um raio me parta. Essa era boa. Que um raio me partisse. E eu, ali, de metades feito, em viagem. Quebrado. Dividido. Impróprio para consumo individual. Não me poderia afastar. Que é do bilhete? Para onde? Ah, esse comboio já saiu, há coisa de quinze minutos. E agora, o meu rico dinheirinho. Vou-me queixar. Oh, mãe! E um raio partiu-me. E, assim, fulminado pela mão pesada de uma nuvem, entrei numa gruta de fogo. Incandescências. Milagres. Profecias. E morri. Ali mesmo, inhozinho da silva. E era eu. Re-morto. Desnascido. Pura imagem de mim mesmo. Elefante. Leão. Gibóia. Joaquim.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, A23, Soalheira, Fundão, 2008
Definitivos. Provisórios.

Pois não. Não se encontra resposta. Tudo se subdivide, até ao limite indivisível do limite já desmultiplicado. E isto é o quê? Baterias? Ritmos? Eternas divisões. Marcas de água. Registos. Carimbos de certeza. Definitivos. Provisórios. Exactidões, imprecisões. O momento mais humano. A certeza. Do fim da incerteza. A inconsequência. A inoportuna inconsequência das palavras.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Quinta da Luz, Lisboa Maio 2008
Fernando Pessoa, 120 anos a 13 de Junho

Acaba-se-me a paciência. Regresso. Que horas são, afinal? 17 e 23? Outra vez? Ainda? Despejo mundos sobre a paisagem clara. E já não volto. Dizem-me. Vou apanhar-me. E corro. E não me canso. Que não me faz falta o cansaço. Não o comprarei em saldo. Ou em época baixa. Deixem-me correr, porra. Deixem-me respirar. Quero ser peixe. E respirar. Assim, de boquinha a soprar baixinho. Como que a dar um beijo no vazio. Constante. No vácuo imenso do fundo do tanque do aquário. Aproxima-se de mim uma dúvida. E esfrego as mãos. E respiro sem querer. Olho para o lado, fitando a janela. Mas sem olhar. Sinto aqui uma picada na barriga da perna. Aguarde, por favor. Vou ter de coçar isto. Que não passa. Chiça. Que não passa. Bom. Próóximôôô.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Velho BUS, Miraflores, Maio 2008
O furacão da dúvida

A marca circular sobre o corpo. O caminho por onde segue. O rasto. O sémen deixado sem dó pelo caminho. A semente inacabada. Porque essa dúvida se mantém. Permanente. Perene. Mas circunstancial. Ácida e volúvel, mas mansa e tempestuosa. O furacão da dúvida. A tempestade.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Avenida dos Combatentes, Lisboa, Maio 2008
Ficou satisfeito, não é verdade?

Lindo, lindo era seres azul e eu também

Não ficámos presos à lágrima de não sermos nós quem saiu dali? Tivemos medo. Lembras-te? Aquilo não éramos nós. Éramos outros. Um cajado, a telefonia, duas cabras. E nós. Ali. Assim, sentados a ver. E o futuro a despedir-se de nós, como a gozar, a fazer pouco. Queres levantar-te? Queres mexer-te? Vens? Só às 17 e 23? Caraças, pá. Não me faças perder esta vontade de sair. De me ir embora. De crescer. É tão boa. A consciência da nossa vontade. Mas dói, parece-me, aqui assim, no meio das costas. Dói um bocadito, mas não é nada. Não há-de ser nada. Vais ver.
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira. Baixa-Chiado, Lisboa, Abril 2008