Um rapaz triste numa cidade tão triste como o espírito que o habita. Comungam, mesmo assim, de uma cumplicidade que se não explica. Que acontece a cada um deles - ao mesmo tempo - e se dilui, entrecruzada por fraquezas de espírito ou paredes escorridas de chuva, tão tristes como o seu cabelo rapado. Curto. Inexistente.
Existem um para o outro como estranhos. Ele calca-lhe as calçadas. Ela deixa-se possuir por esses passos divagantes, incertos por vezes. Amam-se sem saberem sequer que se conhecem absolutamente. Ambos são peças mínimas de um puzzle de que nem sequer desconfiam da existência. Habitam-se, calmamente, tão bem ou melhor que o caracol que ocupa a casca.
Se a consciência existe aqui, chama-se inconsciência. A cidade e o rapaz triste acomodam-se ao ritmo dos dias. Serão estes, porventura, quem os moldam - a ambos - mais do que o contrário.
Acordar não custa. O mais difícil é despertar para a manhã. Reconhecer-se, a si mesmos, rapaz e cidade, depois da moribunda aparência do sono de uma noite. A par, vingam-se desse estado de confusão matinal com banhos de água. A par, sempre que chove ou a torneira jorra, fiel ao propósito para que nasceu: verter esse líquido pálido e frio que, só aquecido, os corpos suportam.
O rapaz triste e a sua cidade gémea entrecruzam-se numa esquina, a caminho do emprego. Onde trabalha a cidade? Pergunta-se também o que poderá fazer um rapaz triste nesse labirinto pegajoso de ruas e avenidas.
Crescerá - porventura - a dúvida se se disser que ambos alimentam sem custo a tristeza de que padecem? De onde lhes vem essa vontade de manter intacta essa marca que a ambos confunde? Funde?
O rapaz triste não se importa com o passar dos dias. Talvez já nem seja rapaz. A cidade, essa, finge-se impedida de sentir e camufla a tristeza com neons, prédios espelhados e candeeiros esguios.
Mascaram-se um ao outro. Protegem-se num silêncio cúmplice que ambos aceitam sem esgrimir argumentos de qualquer espécie.
Mas, ao mesmo tempo, que se igualam e acompanham - numa irmandade que impressiona quem repara -, esquecem-se do que os faz, afinal, acordar a cada nova manhã: o outro. A voragem de pertencerem cada um à outra parte. De partilharem uma visceral necessidade de respirar o ar comum, sem quaisquer reservas e sem receio da partilha.
Cada um é canibal do outro, como se essa fome visceral fosse mais importante que estar vivo.
E, no entanto, esquecem-se de si.
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