Para onde fomos?

Despediste-te de mim com um rápido adeus. Fui eu quem se foi embora. De quem fugimos, afinal? Para onde fomos em Novembro?
Foto (c) Oiratan

Mas não é hoje o quê?

Não é hoje. Nem talvez nunca. Mas não é hoje o quê? Que decisão tenho de tomar? O que tenho de fazer? Quais são as minhas próprias directivas? Sentir o vento? Dar uma volta? Ter uma casa? Será? Será esse o meu desiderato?

Não, não é isso que quero para mim. Quero apenas chegar a um sítio qualquer onde me sente e olhe e mansamente diga, de mim para mim, 'Boa tarde'.

Sem sequer olhar

Eia, eia, eia! Por aqui de novo, subindo escadas, subindo muros, de salto em salto. Já é de noite quando me aproximo de lugar algum. Ouvem-se zumbidos de toda a ordem. Luzes ao fundo, luzes, luzes numa cidade que já dorme, atenta e fiel a si própria. Imaginada? Não. Bem real. É nesta cidade que durmo. Acolheu-me e aqui estou. Um beco, uma porta de entrada, um hall, uma escada, duas mulheres que passam. Uma senhora à janela, mãos postas, como se toda a paisagem fosse o seu altar. Cabelo branco. A cidade é acariciada por uma brisa que faz cantar os plátanos. Passam dois carros. Que estranha noite. Um foco ténue ilumina um chafariz e eu passo por ele sem sequer olhar. Sem sequer olhar. Tenho pressa. Tenho alguma pressa de chegar a um lugar muito meu. A um lugar tão velho como eu próprio. Porque já estou onde estou. E se já estou onde estou, porque me dirijo para o lugar para onde vou? Porquê? Para onde? Para alguma encruzilhada, sinalizada a branco e azul? Sigo em frente. Sigo em frente neste passeio estreito e passo a mão, como uma carícia, por uma parede pintada a vermelho. Antiga. Era uma quinta esta quinta. A Quinta da Luz. Para onde vou? Nunca saberei. Esse será para sempre, e sempre, o meu mistério. O meu mistério. Também tenho direitos. Se ninguém criar um mistério para mim, tenho de ser eu a criá-lo. Adeus. Até já.

Dez da noite

São as dez da noite. Estou a chegar a casa. Sou eu quem dá, passo após passo, o rumo a este caminho tantas vezes repetido. Rumo a mim mesmo. Rumo a lugar algum. E aqui estou eu, penando por mais um passo, à procura de alguma coisa que não sei o que seja, de uma maresia, de um pedaço de ar que me afague a testa. De uma gota de suor. Silêncio. Quem serei quando, prostrado sobre mim mesmo, amado, odiado, afastado, ostracisado... quem serei nesses momentos? Por quem me tomo? Quantos sou, quantos fui e quantos serei? Por que nome me poderei identificar? Por que nome me identificarei amanhã quando te aproximares e disseres ‘bom dia, olha, está a chover’. Quem serei eu nesses momentos? Estou ofegante, apertado aqui nesta avenida. Passa um autocarro, um táxi e uma viatura particular, como soy dizer-se no calão policial que todos os dias me entra pelas orelhas e me sai pela ponta dos dedos. Escrevo notícias, dizem. Escrevo notícias. Estou quase a chegar a casa. E perco-me de mim mesmo no meio de todas as palavras. No meio de toda esta escuridão que me afoga, que me faz viver, que me alimenta. Eu sou esta falta de luz, este bater compassado do coração, esta chuva que cai às dez, este passo perdido que dou todos os dias no mesmo sentido, esta lacuna. Às vezes penso que o melhor seria vogar, vogar e não andar passo a passo, pouco a pouco, nada a nada. Uma miragem, um pequeno fôlego, um suspiro. Mais um passo. Estou quase em casa. Estou quase em mim. Quem serei quando entrar? Quem serei quando aquela chave rodar para a esquerda duas vezes e a porta castanha se entreabrir e no escuro daquela casa? Vou proteger-me, no escuro daquela concha. Vou encontrar-me a mim e a mim mesmo. Adeus e até amanhã.

Este dia é teu e meu

Marcha. Avança. Move-te. Partilha. Sofre. Canta. Vive. Vive livre, Liberdade!

De tudo o mais faça-se pó

Uma luz morna irrompe sobre as costas da floresta. Um ganir de cão sobressalta pombas esquecidas de deus. Miserável crime. O abandono. Respirar nessa hora é cumprir o mais puro egoísmo. É ser-se deus também. Matem-se as pombas. De que mais nos socorremos quando o transe, a angústia e o medo nos agrilhoam? À morte. À morte dos outros. Massacre! Desfaçam-se todas as pedras; amontoem-se os escombros e juntem-se-lhe os ratos mortos. Restos. Despejem-se em qualquer lugar os despojos dessa fúria incontida, moribunda. Deus há-de ser testemunha dessa festa. De tudo o mais faça-se pó.

(Texto escrito em Março de 2003)

Apetece-me escrever-te a cada vez que te penso. Por todo o lado, onde quer que me encontre, desejaria escrevinhar para ti, da mesma maneira que desejo estar no lugar para onde quero ir. A rua, principalmente, é onde mais me apetece falar-te por palavras escritas. Na maior parte das vezes não trago caneta, nem papel, nem spray de cores com que pudesse manchar paredes. Para ti.

Interrogo-me se o teu silêncio é esquecimento ou desamor. Ainda espero, acredita, que me digas alguma coisa, mesmo nada, mas que separes pelo menos por mais uma vez, esses teus dois fios de lábio por onde te saem as mentiras que me contas. Conta-me, vá lá, mais uma das tuas histórias de cavalos. Conta-me esses teus olhos de chinesa que nunca gostaste de reconhecer. Caso contrário, contarte-ei eu uma das minhas.

Será que tenho alguma?

(Lisboa, Dezembro de 1996. Foto: (c) Pedro Salgado, Lx, s/d)

Um beijo e um abraço

Passam num passo corrido. Passeiam como se cada passo soasse a mais um pedaço de texto redigido. Vogam, penam, arrastando o baço, com rasos pés de barro. Perdem-se, encolhidos no corpo passado a fino traço. Pelo tempo. Sobrevivem. Negoceiam e desfazem-se no espaço. Calcorreiam mundos, atacados de um cansaço flácido e baço. Regurgitado e mal amado a cada dia que passe. Reúnem-se de olhos vendados. Dão-se as mãos inchadas e um abraço. Pedem trocos a troco de um pedaço de mundo que nunca foi de quem lhos dá, como um laço que se ata num presente. Passado com factura. Um beijo e um abraço.

Portanto...

É recorrente este hábito de voltar espaçadamente a um lugar. Este é um deles. Os motivos que estão por detrás desse impulso? Desconheço-os. Há coisas, espaços e pessoas de que(m) se gosta sem explicações. E este pequeno mundo que o Fogo-Fátuo representa (tendo acoplados outros três mini-blogs - Alberto Caeiro Revisited, Noite e Solilóquio) é uma delas. Comparo-o a um amigo que não se vê há muito tempo, mas que se sabe, com uma certeza intuida, que está lá - igual a si próprio e sendo o mesmo amigo de sempre. Eis-me, portanto, aqui, mais uma vez. Já noutros posts regressei. E regressarei quantas vezes for necessário. Sempre e mais uma vez. Portanto...

Pingos

Adivinho uma noite suave à minha frente. Chove a pouco e pouco. Outono. Folhas de plátano começam a fazer-se ao mundo. Lançam-se a um chão de terra e pedras. Adivinho uma suave noite aqui por perto. O Outono sou eu quando assim me sinto. Caio sobre mim, amarelecido, pálido, seco. A chuva humedece-me os cabelos. Banha-me inteiro sem perguntar porquê. Deixo, sem resmungar, que ela me constipe. Afinal, o Outono sou eu. Ou será que é outro que ainda não sei?

Sempre o regresso

Nunca se sai. Nunca se abandona. Fica-se sempre. E o tempo avança, avança, até ficar (quase) parado. É o que parece a alguns. Mas não a todos. É o que não acontece, pelo menos, comigo. Quem me quiser seguir, que me siga, disse alguém. Eu por aqui continuo. Mas não parado.