Apeteceu-me recordar estas palavras. Ponto.

Frente aos meus olhos, prédios. De cores vagas e antigas. Desgastados. Pedem amor, estas casas. Pedem, mas ninguém lho dá. Porque o amor, por aqui, é coisa vã, caso perdido. Não existe, nem brota do betume negro das estradas ou da luz dos candeeiros de rua. Por aqui o amor fugiu. Fez-se, porventura, a outros lugares. Deu-se a outras paragens, vagabundo de outras liberdades. O amor tinha sede. Foi beber água a fontes de aldeias, a minas e nos montes. Fez-se ao mundo, sedento de outros ares. Não passou por aqui. E, se passou, fez-se invisível, para não ser reconhecido. Para que não fosse confundido com as pedras da calçada nem com as persianas corridas das janelas. O amor não é das cidades. É fruto, seiva, caule e raiz do perfume das searas. O amor é na gândara livre. Na cor fria, lúcida e transparente dos riachos. O amor veste-se dos campos, aquece e arrefece ao ritmo de chuvas e estios, não se dilui no betão cinzento dos prédios. O amor quer espaço para saltar de corpo em corpo, de beijo em beijo. Quer-se sadio, firme e desinteressado. Verdadeiro. Entre uma árvore e um arranha-céus escolho o que me dá sombra e alimento, o que reage às tempestades e se balança com o vento. O que precisa de mim para saciar a sede. Escolho o que morre de pé e me dá lume. Nenhum prédio me dá carcódias ou folhas secas ou frutos. Neles morro de fome. Prefiro o amor de uma raiz de castanheiro ao plástico fingido que ornamenta os cantos de uma casa. Nunca beijarei uma parede. Antes uma folha morta de roseira. Mil vezes uma roseira morta a um prédio altivo. Sou ainda eu quem fala aqui.

Desinfectadas almas

Amarrar esse escritório de escombros e gavetas é o que é preciso que se faça. Atacar. Desarrumar a turba feita de urros, desfeita de sentido. Adormecer sem ordem nem sossego. Volúpia celeste, incandescente e fria. Sussurrante. Penetrada. Renascer. Vede-vos. Ofegantes desse exercício de marear corpos e peles. Miseráveis carícias. Impenetráveis cadáveres de prazer. Frígidas frigideiras. Mingau. Pó de talco. Arroz sem bicho. Limpinhos esses corpos. Desinfectadas almas.

Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Tricolori, Lisboa, Junho, 2008

Elefante. Leão. Gibóia. Joaquim.

Menina Mariana telefonou, diz a criada. Que sim. Que deixe mensagem. Mas se já ligou... Que para a próxima, se próxima houver, digo eu, que ouvi toda a conversa. Esse ocupar oco do tempo e do espaço. Esse fio de navalha romba que nada corta, que nada tira e nada dá. Esse vazio. De que húmus é esta gente feita? Procurará um sentido para a vida? Mas, que raios... Que um raio me parta. Essa era boa. Que um raio me partisse. E eu, ali, de metades feito, em viagem. Quebrado. Dividido. Impróprio para consumo individual. Não me poderia afastar. Que é do bilhete? Para onde? Ah, esse comboio já saiu, há coisa de quinze minutos. E agora, o meu rico dinheirinho. Vou-me queixar. Oh, mãe! E um raio partiu-me. E, assim, fulminado pela mão pesada de uma nuvem, entrei numa gruta de fogo. Incandescências. Milagres. Profecias. E morri. Ali mesmo, inhozinho da silva. E era eu. Re-morto. Desnascido. Pura imagem de mim mesmo. Elefante. Leão. Gibóia. Joaquim.

Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, A23, Soalheira, Fundão, 2008

Definitivos. Provisórios.

Pois não. Não se encontra resposta. Tudo se subdivide, até ao limite indivisível do limite já desmultiplicado. E isto é o quê? Baterias? Ritmos? Eternas divisões. Marcas de água. Registos. Carimbos de certeza. Definitivos. Provisórios. Exactidões, imprecisões. O momento mais humano. A certeza. Do fim da incerteza. A inconsequência. A inoportuna inconsequência das palavras.

Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Quinta da Luz, Lisboa Maio 2008

Fernando Pessoa, 120 anos a 13 de Junho

Acaba-se-me a paciência. Regresso. Que horas são, afinal? 17 e 23? Outra vez? Ainda? Despejo mundos sobre a paisagem clara. E já não volto. Dizem-me. Vou apanhar-me. E corro. E não me canso. Que não me faz falta o cansaço. Não o comprarei em saldo. Ou em época baixa. Deixem-me correr, porra. Deixem-me respirar. Quero ser peixe. E respirar. Assim, de boquinha a soprar baixinho. Como que a dar um beijo no vazio. Constante. No vácuo imenso do fundo do tanque do aquário. Aproxima-se de mim uma dúvida. E esfrego as mãos. E respiro sem querer. Olho para o lado, fitando a janela. Mas sem olhar. Sinto aqui uma picada na barriga da perna. Aguarde, por favor. Vou ter de coçar isto. Que não passa. Chiça. Que não passa. Bom. Próóximôôô.

Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Velho BUS, Miraflores, Maio 2008

O furacão da dúvida

A marca circular sobre o corpo. O caminho por onde segue. O rasto. O sémen deixado sem dó pelo caminho. A semente inacabada. Porque essa dúvida se mantém. Permanente. Perene. Mas circunstancial. Ácida e volúvel, mas mansa e tempestuosa. O furacão da dúvida. A tempestade.

Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Avenida dos Combatentes, Lisboa, Maio 2008

Ficou satisfeito, não é verdade?

Tenho aqui um macaco... que... isto... ai. Fóige! Estava preso ao pêlo. E veio o pêlo com ele. Tanto melhor. É menos confusão na salinha do nariz. Bem. E a propósito de nada, venho comunicar a Vossas Excelências que a cor da noite acabou de esmorecer. Misturou-se com o seu próprio corpo. E anoiteceu. Este foi um fenómeno que se verificou apenas hoje. Não mais se verá. Foi caso raro. Mas ficou gravado. Quem tiver perdido a ocasião... PODE RECORDAR TUDO COM O DVD DE APENAS 12 EUROS, SEM CUSTOS NEM PORTES DE ENVIO. Stock limitado às palavras que você consegue ler nesta mental e colectiva falcatrua que o convence a guardar para nada o nada que já comprou. Bem. Adiante. Você já pagou. Ficou satisfeito. Não é verdade? E que se lixe a teoria de Kant, que não tinha tempo nem para tomar banho, de tanto escrever. Não é verdade? Ai não? Ouvi dizer...
Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira, Quinta da Luz, Lisboa, Abril 2008

Lindo, lindo era seres azul e eu também

Não ficámos presos à lágrima de não sermos nós quem saiu dali? Tivemos medo. Lembras-te? Aquilo não éramos nós. Éramos outros. Um cajado, a telefonia, duas cabras. E nós. Ali. Assim, sentados a ver. E o futuro a despedir-se de nós, como a gozar, a fazer pouco. Queres levantar-te? Queres mexer-te? Vens? Só às 17 e 23? Caraças, pá. Não me faças perder esta vontade de sair. De me ir embora. De crescer. É tão boa. A consciência da nossa vontade. Mas dói, parece-me, aqui assim, no meio das costas. Dói um bocadito, mas não é nada. Não há-de ser nada. Vais ver.

Foto (c) Joaquim Eduardo Oliveira. Baixa-Chiado, Lisboa, Abril 2008