Quando a morte vem do mar

Veio uma onda e levou-me. E um sopro forte, forte demais, abalou tudo o que eu via. O chão que pisava fugiu-me. Deixei os olhos no mar. O que encontrei nessas águas? Um fundo tão fundo como o meu próprio silêncio. Abracei-me então a uma vaga e a maresia falou-me. Vens comigo porque é esse o meu desejo. E eu fui, comandado pela maré que me acolheu.

JEO

Ainda

Há sempre um tempo. Uma verdade. Um momento. Há sempre um ritmo. Uma cadência breve. Um respirar. Desbravo esse tempo, essa verdade, esse momento. E o ritmo que descubro revela a cadência breve dos meus dias.

JEO

Desde quando

(c) Antoine D'Agata/Magnum Photos

Misturei sobre a palma da mão duas longas memórias. Confundi ingredientes de passado. O tempo remexido. Os meus olhos. Sensações. Reencontrei-me com quem já não era. E voltei a ser eu. Sobre a minha mão. Arrepio. Fósforo momentaneamente incandescente. Brisa breve. Por onde fui? Onde cheguei?

JEO

Descobrir-te

(c) Ralph Gibson s/d

Porque me olhas assim? Porque me olhas? Desconfias?

JEO

Com essas tuas mãos

(c) Ralph Gibson s/d

Nasce a imagem. Inventa-se um corpo. Um delito da consciência. A transfiguração que acontece é contrabando. Cópia infiel. Porque o que antes era deixou de o ser nesse momento. Reinventar o que seja é interpretar, encenar, recriar, mentir dizendo. Socorro. Nada do que vejo é verdadeiro.

JEO

Espaço em branco

(c) Raymond Depardon/Magnum Photos s/d

Estas palavras não foram escritas aqui. Não estão neste lugar. Este ecrã não existe. Nada do que vês neste momento é o que vês neste momento. Tu não estás aí. Não respiras, nem esbugalhas os olhos. Não estás cansado. Não és. Quem és?

JEO

Encontros

(c) Alex Majoli 2004

São raros os momentos em que respirar é acto livre, se bem me entendes. São ainda mais raros os instantes que revelam que te faz falta respirar, percebes? Procura-os, combate-os e abre os pulmões à saciedade, ouves? Não queiras perder o fôlego ou, ainda pior cenário, o próprio sentido da vida. Concordas?

JEO

Adiro ao mundo sem respirar

Cansado. Morto. farto.

O fardo dos dias pesa como chumbo

e já nem a força da vontade me empurra para a frente

Levanto os braços ao tecto

rastejo por entre grãos de pó, incontáveis

quero, também eu, ser pó que me liberte

Adiro ao mundo sem respirar

Bocejo por prever de antemão o meu próprio futuro

lágrimas de sal sem mar nem ondas

Sujeito-me ao mínimo de mim

E assim, recluso do meu corpo exasperado,

fraquejo. Falta-me a chave do teu dorso.

Faltam-me os teus olhos

Que procuro para onde quer que me volte.

faltam-me os olhos.

Onde estou nesta manhã?

Quem me liberta do grito?

de onde virá quem me salve deste medo?

De que onda, de que mar?

Salvem-se, ao menos, os meus olhos,

para que voltem a chorar quando te fores.

Grito, maldito,

Até à rouquidão total e última

no vértice deste fôlego que me resta

Do eco que me chega

Não vejo notícias novas, nem nuvens

nem outra coisa qualquer que me alivie

Porque o meu eco é surdo, mudo e cego

e cambaleante de vontade

retrai-se nas paredes que me falam

Retiro tudo o que disse até agora

Volto costas às palavras

E faço beicinho

para que o eco me devolva tudo o que é meu.

(Texto escrito em Outubro de 1996)

JEO

A uma certa tarde

A uma certa tarde, não espero. Neste recanto aquecido da casa, não descanso. Moribundeio-me. Desvivo. Irrespiro.

Para onde páro, se não vou?

Com quantos dedos terei de dizer de novo que estou mais cansado que ontem?

Estou mais cansado que ontem.

Quantos dedos foram? Distraído, não me dou conta, sequer, das minhas mãos.

(Texto escrito em Janeiro de 1997)

JEO

Todas as dores menos esta

(c) Paolo Pellegrin/Magnum Photos 2003

Desejaria esvaziar-me do mundo, voltar ao zero de onde procedi. Ser, de novo, raiz profunda do fio de vida que me deu origem.

Desejaria não ser, por uma vez, quem e o que sou hoje e agora.

Desejaria não querer nada para mim, desactivar-me. Para voltar ao grau nulo do que fui.

Não desejar é o meu maior desejo. Mas, inoportuna, a vontade de querer já não me larga. Mantenho-me dentro de mim. E nunca me hei-de separar deste corpo que me transporta atormentado. Desejar, assim, o que seja é querer possuir o que não há, sentir o que não se dá, engolir coisa que nunca se comeu.

Dói-me a barriga. Melhor seria que a dor fosse, ao menos, outra. Qualquer. Todas as dores menos esta. Ou nenhuma.

Mas, afinal, o que me peço? Para que multiplico, assim, sem substância? Porque me dou a estes pensamentos?

Desejaria não desejar absolutamente nada. Dizer não. Desdizer-me, desviver, desacordar. O que me digo? Não quero ouvir! Quando me apago?

(Texto escrito em Novembro de 1996)

JEO

Tatuagem

 Healey - Circular Rhythms I posters Healey - Circular Rhythms II posters

(c) Healey - Circular Rhythms I e II

Este não é o meu círculo nem o meu desejo desejado. O risco que tracei na areia não é de agora. Anda, desaparecido e intacto, pelo mundo. Procura novos desejos e perde-se em outros chãos que não o meu.

Desenhei-te a lápis no meu corpo. Fiquei ferido de uma dor que nem sequer sentia. Porque me fugiste, logo ao primeiro banho.

Pensei - Então porque me lavo, se te deixo, assim, escrita e apagada, a pairar sobre o meu dorso?

JEO

Sinto vertigens ao pensar que cairia

Imagino-me inclinado no parapeito do mundo, pronto a saltar para lugar nenhum. Por quanto tempo se prolongaria esse pulo, essa queda? Onde me levaria essa viagem nocturna e estelar? Quem seria eu ao aportar ao lugar onde chegasse? Se chegasse?

JEO

Dez Encantos Sobre Saltam A Pele

A. Aubrey Bodine - High Rise Construction(c. 1950) (Large) posters

(c) A. Aubrey Bodine - High Rise Construction (1950)

I.

Esvaem-se no tempo pedaços de um corpo

Esvaem-se(sem mácula, sopros de um vento indefinido)

no tempo(reaberto sobre a planície calma, desfeita em sopros)

pedaços(de feno. Sobrevoam-na almas. Penadas. E uma só)

de um corpo(feita, qual estrela aberta rente aos olhos.)

Esvaem-se no tempo pedaços de um corpo

II.

Por onde caminhamos quando os olhos se fecham

Por onde(Espreitamos, a espaços, curtas pausas. Cintila um luz.)

caminhamos(Abertos, os olhos resguardam-se. Intensidade.)

quando os olhos se(Descobrem, desvendam-se em magias plenas)

se fecham(visitando de novo mais um Inverno claro.)

Por onde caminhamos quando os olhos se fecham

III.

Corre um vento forte sobre a minha cabeça

Corre(Livre, a consciência desenganada do mundo)

um vento(frio. Sobressai na pele. Resguardo-me do medo.)

sobre(Tudo avança em direcção a essa linha invisível, finita,)

a minha cabeça(dormente, que se revolta, esquecida do espaço.)

Corre um vento forte sobre a minha cabeça

IV.

A inconsciência faz-se dos medos dos outros

A inconsciência(Levanta-se, manhã clara, sobre a cidade.)

faz-se dos(Escombros. Despertam também para esse dia)

medos(de calores e vento. Faz Verão. Espera por pedaços de luz)

dos outros(mais fortes que a intensa fraqueza da noite.)

A inconsciência faz-se do medo dos outros

V.

Quando os olhos falam do mar crescem muros em terra

Quando os olhos(São seres abertos na distância. Acorrem passados vários.)

falam do mar,(Fiéis e profundos. Saem do místico novelo dos dias)

crescem muros(renascidos de uma cinza volátil, despregada,)

em terra(como se fossem chama e luz e fogo e quente.)

Quando os olhos falam do mar, crescem muros em terra

VI.

Toco-te. E o teu rosto é o mundo todo desejado

Toco-te.(A uma hora qualquer. Encontro o dia)

E o teu rosto é(marejado, feito de calor. O corpo desfaz-se em carícias)

o mundo(de encontro ao solo aquecido das mãos.)

todo desejado(, o amanhã será hoje à mesma hora.)

Toco-te. E o teu rosto é o mundo todo desejado

VII.

Prefiro a chuva às flores colhidas

Prefiro(Saborear cada novo fôlego que me ofereces,)

a chuva(intenso mar. Corpos caídos, rentes,)

às flores(verdes, quando se acabam os trabalhos do campo)

colhidas(na pradaria fértil, oferecida e calma.)

Prefiro a chuva às flores colhidas

VIII.

Chega-te mais perto. Vem

Chega-te(Preferir o fruto que colheste? Retalhar,)

mais(a fundo, cada pedaço de verde. Solta-se um gemido)

perto.(Demasiado próximo. Estridente, angustiado,)

Vem(ao meu encontro. Toca-me sem arrepio.)

Chega-te mais perto. Vem

IX.

Para onde olhas quando olhas?

Para(Quem são estes dias? Passas)

onde olhas(sempre que te miro. O tempo)

quando(acaba, resvala por entre os dedos.)

olhas(e é como se a noite acordasse agora.)

Para onde olhas quando olhas?

X.

Sempre que respiras o transe do meu corpo

Sempre(Renegado por carícias, perco-te em tremores)

que respiras(mansamente, fora do meu beijo coagulado em tua face,)

o transe do(mundo inteiro, miragem arquejante do teu sono.)

meu corpo(E minhas mãos sobrevivem à ausência. Fracos de fome.)

Sempre que respiras o transe do meu corpo

JEO

De tudo o mais faça-se pó

Uma luz morna irrompe sobre as costas da floresta. Um ganir de cão sobressalta pombas esquecidas de deus. Miserável crime. O abandono. Respirar nessa hora é cumprir o mais puro egoísmo. É ser-se deus também. Matem-se as pombas. De que mais nos socorremos quando o transe, a angústia e o medo nos agrilhoam? À morte. À morte dos outros. Massacre! Desfaçam-se todas as pedras; amontoem-se os escombros e juntem-se-lhe os ratos mortos. Restos. Despejem-se em qualquer lugar os despojos dessa fúria incontida, moribunda. Deus há-de ser testemunha dessa festa. De tudo o mais faça-se pó.

(Texto escrito em Março de 2003)

JEO

Um Neruda

Bloom - Running Leopard posters (c) Bloom - Running leopard

"A vida acaba definitivamente nos meus pés"

Pablo Neruda, in "Antologia Breve"

JEO

De volta

 Picasso - Dove of Peace (serigraph) posters

Picasso

Após seis dias de pausa, é sempre bom voltar. Mesmo sem comentários. E só para picar o ponto, como se diz por aí.

JEO

À espera da próxima vez de respirar

Brassaï - Brouillard, Avenue de l'Observatoire posters

(c) Brassaï - Brouillard, Avenue de l'Observatoire

Percorre-me uma hora nocturna. Saio. Desinfecto-me do mundo. Há por aqui oxigénio que chegue para sufocar um pouco menos. Neste ambiente subterrâneo encontro todas as frases. Todas as imagens. E fico-me por aqui. Sentado, à espera do próximo metro.

À espera da próxima vez de respirar.

Se não sufoco é porque não quero morrer agora. Mesmo. Esta agonia é passageira, apesar de tudo. Breve e passageira.

Ainda é noite aqui por baixo. Noite eterna, porventura.

Passam caras. Passam passos arrastados num silêncio velado, que não meu. Passam, abraçados, namorados, no compasso dos passos que se dão. E dos beijos que prometem com os olhos.

A esta hora, o ritmo do mundo marca-se com rugido de comboios, luz de túneis e linhas de carris. A esta hora já não há quem seja humano. Aqui dentro (debaixo) tudo é máquina, ruído e luz. Ruído e luz. E eu estou lá dentro. Faço-me máquina também.

Procuro sensações. Procuro imagens. Tudo me foge perante o sono. Tudo me escapa a este ritmo. Vou perder o próximo autocarro. Ainda há homens que se arrastam, limpos, penteados, bem vestidos. Farejam a vida com mãos cegas. Afinal, a vida é que anda atrás deles. Ronda-os o prazer de sentir felicidade. Ronda-os apenas. Não os toca. Não os quer. Nem os toma, jamais, para si.

Vou sair deste túnel. Regresso à vida. À superfície. Faço-me sozinho. Percorro as minhas avenidas. Aqui o ar seria menos poluído sem os carros-humanos-que-são-máquinas.

JEO

Uma imagem

Picasso, Pablo - Bullfight II - Matador posters

Picasso

Toureiro universal.

JEO

Essas pupilas

A. Aubrey Bodine - Heavy Seas(c. 1950) (Large) posters

A. Aubrey Bodine - Heavy Seas (1950)

Perplexo, sempre e mais uma vez, frente a esta página em branco, fixo os teus olhos. Neutros, da lonjura. Não me vês?

Olha-me de fronte: diz-me o que entra nos teus olhos. Descreve a minha imagem transmutada no teu corpo. Redige-me. Pinta aos meus ouvidos as cores da minha boca, dos meus dentes.

Revê-me. Sê paciente. Recria em ti tudo o que sou e que recolhes.

Essas pupilas. Muito daria para voltar a beijar as pérolas desse rosto. A quem as deste?

(Texto escrito em Julho de 1997)

JEO

Ah, pois é

Pasme quem pensa que tudo o que existe é definitivo.

Avance quem sabe que essa certeza não passa de um logro.

JEO

A António Ramos Rosa - 80 anos

A calma é lua breve que se inspira - JEO

António Ramos Rosa completa hoje 80 anos. Muito daquilo que escrevo é culpa sua. Cresci com a sua palavra, com o seu silêncio. O seu estar quieto das coisas.

Deixa-me aqui mais esta marca.

Eu deixo-lhe também um agradecimento.

JEO

No centro de mim

Abate-se uma nuvem de lágrimas sobre a cidade. Corpos de mulher abarcam os meus olhos. Completos, esses gestos. Movimento. Ritmo sob as lágrimas da chuva.

Dentro da cidade triste escorrem passos incontáveis. Rostos, ilusões e miragens. Máquinas urram no espaço, dominam, à passagem, os meus ouvidos assombrados. Distraem-me dos corpos das mulheres. E passam, numa constância que enerva.

Não vou chegar a tempo ao meu destino. Passam-se as horas. Perco o espaço que me resta. O compromisso que fiz comigo. Dei-me um limite que devo cumprir. Até à hora marcada, no centro da cidade das nuvens de lágrimas.

No centro de mim.

JEO

Sempre a dúvida

De que me servem os olhos se não vejo o que não vejo?

JEO

Faltas-me aos olhos

Saciei-me da fome. Matei a sede. Falta-me, contudo, a substância. Uma só. A vitamina da alma e do desejo. Insosso, o correr dos dias resfria-me a língua. Sem o sabor do teu corpo. Longe. Tenho fome. Da sede, dessa, não me lembro já de a beber com o que mes resta de alma. Faltas-me aos olhos. Aparece.

JEO

Em espera

"O beijo" (Der Kuß), por Gustav Klimt

Aguardo. Inteira. A tua face. Desembarcaste há dias noutro porto. Mas levaste-me. Contigo. Na memória.

Não esperarás. Também tu. Pelo regresso?

JEO

Fome

Como um pão. E é como se toda a seiva da terra entrasse por mim adentro. A minha saliva é a água da chuva convertida em espuma. Os meus dentes são arados que sulcam a terra e lhe põem o húmus à flor da pele. O meu adubo é o apetite que tenho e faz crescer, na vontade, a fome de outro pão na mesma boca.

JEO

Alberto Caeiro revisitado

Apetece-me ler um pouco. Ler é bom. Porque há lá, dentro dos livros, mundos novos e sóis que nunca se põem. Podemos ler de noite e ver o Sol. Isso é muito bom. Aquece-nos a cara quando ficamos com sono. É.

Eu não queria dizer mais nada. Mas as palavras nascem de uma vontade que eu não conheço e que talvez me domine, sem eu saber. Não conheço essa vontade e não a domino, da mesma forma que o mundo não domina o vento e o calor. Senão conhecia-se a si próprio.

Ainda me apetece ler um bocadinho. Mas penso naquelas pessoas a quem vai apetecer ler aquilo que agora escrevo, o que eu escrevo, um dia. Penso nelas e só nelas. Porque não sou egoísta. E porque gosto de escrever, assim como gosto das coisas e gosto só um poucochinho do pôr do Sol. O pôr do Sol é vadio. Nunca tem casa. Não se aninha numa montanha porquê? Também deve ter frio, como as minhas mãos. Talvez por ser muito grande. Tudo o que é grande deveria sentir frio, porque o vento bate mais e a chuva molha em maior quantidade. Eu não quero ser grande.

Não gosto muito do frio. As minhas mãos não falam, mas eu sei que têm mais frio do que eu. Às vezes gostava de ser as minhas mãos e andar lá, por cima dos braços esticados e mergulhar nas arcas velhas quando se anda à procura de um cobertor mais macio que nos tape à noite. Elas conhecem um mundo diferente do meu. Elas, as minhas mãos, sentem a textura das coisas quando tocam só de leve, quase sem sentir. Conhecem outras mãos de outros corpos quando há um aperto de mão.

Ah. Elas conhecem tanta coisa. Que eu nem imagino. Imaginar é bom. Por isso eu gosto das minhas mãos.

Se não fosse por isso eu gostava delas na mesma.

(Texto escrito em 1990)

JEO

A imensidão calada das coisas

Penso o silêncio. Oiço o calar de tudo o que é calado. Encontro-me com a totalidade, com um universo que não fala comigo, com a imensidão calada das coisas. E fico só.

Nesse momento encontro a minha face outra, o meu eu que não conheço e não desvendo, porque calado, também ele. Fico ainda mais só. Todo. Eu. Só, eu todo. E adormeço. E finjo ser então calado também no meu sono. Finjo-me enquanto não sei quem sou ou o que desvendo.

A imensidão toda que pensei perde-se nesse pecado de fingir, nessa fronteira entre um bem e um mal que não conheço, mas que sinto, paredes-meias com a minha consciência do que é bem para mim e do que é mal para comigo.

Transfiguro-me no sonho e sinto um cheiro inválido e perene de nevoeiros oníricos que me fazem submisso de si. Perco-me, também, por isso. Porque não sei o caminho de volta. Porque não sei se é labirinto ou terra plana e limpa esta que piso.

Porque já não sei qual o momento de acordar.

(Texto escrito em 1989)

JEO

Respiração inconsciente

Há horas em que a minha consciência não me pertence. Não sou seu dono. Sou, sim, seu comandado obediente e subjugado. Quando assim é não sou eu quem por mim age, quem por mim se movimenta. Entro num transe seduzido e sem retorno.

É quando a noite se faz ao mundo e se ouvem uivos de lobos mansos ao longe, ecoando na gândara sob o corpo da lua.

Estar vivo, nesses momentos, é não sentir que se vive, é respirar sem consciência disso, é estar sentado diante de uma parede e imaginar o mundo em movimento nela. Estar vivo, então, é ter os olhos fechados e ver perfeitamente. Perfeitamente.

Assim como quem olha e vê.

JEO

Não mereço nada do que tenho

Amargamente me apercebo da hora tardia em que acordei. Até então vivi em sonhos. No paraíso de uma consciência liberta. Prazeres agora findos.

Já não há lugar para vícios inoportunos e excessivos.

Revejo a minha cara no espelho verdadeiro do mundo: este sou eu!, o ilusionado, o visionário acordado fora de tempo, o sonhador enovelado nas palavras mansas e arredias de tudo o que é vil e humanamente insuportável.

Não mereço nada do que tenho. Sanguessuga desde que nasci, até agora. Os meus olhos, agora (tarde) bem abertos, nada enxergam. A cor que vêem nas coisas é só sua, ficção ocular e frágil, mesmo assim.

Desfaleço. Ninguém me acode.

Há muito que não estava só.

(Texto escrito em 1989)

JEO

Equilíbrio

Estar vivo é ser constante como as pedras, móvel como as águas, seguro como as árvores ou as montanhas, e despejar a mente de tudo o resto, em equilíbrio.

JEO

O corpo sem a alma é como os pés sem o caminho

Dali Les elephants posters

"Les Elephants", por Salvador Dali

Porque não fingir um outro espaço?, um outro riso?, um outro ar que se respire? Porque não um alheamento do mundo objectivo que se vive todos os dias?

Um estado transitório no corpo, uma outra alma, um outro céu.

Os organismos fáceis revigoram nesta amálgama de dúvidas. Os outros..., os outros surpreendem-se com a luz e morrem sob um sol qualquer que descobriram.

Reescrevo uma esperança perdida. E nela me encontro deficientemente renovado. Perco a minha alma, não sinto fluir já o vento que senti quando era minha.

O corpo sem a alma é como os olhos sem a luz ou os pés sem o caminho. Anda à deriva e perde o norte das estrelas. Ganha outro, enganoso, que lhe faz mal à calma do espírito.

É assim o meu corpo nesta hora: destinado à deriva eterna, caso a alma não lhe flua aos olhos.

Fico impaciente com a demora e, enquanto espero, faço das palavras o meu caminho bussolado. Os meus sentidos lêem na folha branca as frases escritas ainda não decalcadas. Mas é mais dos olhos que me queixo, é mais desta paisagem em falta que me lembro, destas ervas e destes passos de areia quando a terra é quase mar, de tudo o que não vejo e sinto que me falta.

Quando dou por mim com as mãos escorrendo as faces - e me lembro daquilo já perdido - revogo o desejo de uma sede perdida e morta.

Porque a sede que matei não é a mesma fome de água que tive ontem. Foi sede passageira que esqueci e, agora submersa num organismo sem alma, de nada lhe vale o prazer que fez sentir a quem dela se saciou.

JEO

A minha hora é uma âncora

Pudera eu o mar nas minhas mãos. Quisera eu, ao menos, sonhá-lo. Todo. Invejo-o porque não cabe em mim, ao contrário do meu corpo que cabe todo nele. Submerso e submisso. Humilde, este corpo.

O oceano-mar é muita água para os meus olhos. É muito espaço. Demasiado, para que eu nele me aventure.

Desmaio, de tanta água. Perco o fôlego e o rumo. A minha caravela deambula saboreada por ondas de todas as marés. As suas velas afagam esta atmosfera marítima e azul onde me perco. Os meus olhos afundam-se na noite do mar como as mãos se afundam nos bolsos do casaco marinheiro.

A minha hora é uma âncora recortando as águas, assente num fundo de areia e conchas. O Sol aqui não borbulha, apenas remete as sombras para mais fundo, em baixo. Ondulantes e intocáveis.

O corpo dos homens é na terra barrenta, assente, sedenta, arada e parturiente das árvores e das flores.

Afago a cara e acordo. Do meu sonho uma lembrança: peixes nadando em 'terra de ninguém'.

JEO

O silêncio veste-se do dia. Por isso não se vê quando é olhado

Oak Arches

Quando o silêncio é verdadeiro, o Mundo vibra. O silêncio faz rodar o Mundo. Estremecer. Fá-lo girar, vezes que ninguém conta, à volta dos astros e de si próprio.

O Universo está cheio de silêncio. A pigmentação escura do astro sulcado de estrelas é a verdadeira cor desse silêncio, visceral destino das nuvens no outro lado do dia, história fantástica na órbita rente dos planetas em volta de todos os sóis que se não vêem, mas que estão lá, aqui, neste Universo que também é o das trevas, do mar e dos homens.

O silêncio veste-se do dia. Por isso não se vê quando é olhado.

O espaço sem som é o mundo despido, de frente para a Lua, nua também, e sem vergonha. Tem vergonha quem ouve os ruídos e sente neles música transparente revelando o seu corpo desprotegido frente ao espaço, cara a cara com as coisas simples.

Respirar o silêncio é estar calado, é ver crescer uma árvore ou uma manhã e acompanhar o movimento dos ramos e da névoa sem tomar fôlego ou fechar os olhos. Ver as coisas crescer é ser as coisas que crescem, é ser como elas, silenciar o corpo e evoluir.

Levantar-se é crescer em silêncio. É respirar sem suor nem esforço. Levantar-se é ser simples como o Sol: dar luz e ser feliz com isso. Sim. Ser feliz. Ser feliz em silêncio, sem vento nem palavras.

E estar parado?

Estar parado também é ser Sol, e dar luz por isso. Porque ser-se Sol é não se mexer. É ser uma pedra no campo à espera da chuva do inverno, e ser uma pedra no campo à espera do calor de julho ou de uma mão que nos lance até mais além, para dentro da água daquele ribeiro, ali ao fundo. Ser parado é ser pedra submersa neste ribeiro ou naquele mar que os livros me ensinam. É ser a geografia toda, sendo pedra, é ser todas as palavras, sendo letra.

O silêncio é isto: uma mão que se fecha esperando os dedos dormentes, para se abrir, de novo, projectando os dígitos todos à luz do dia em que isso aconteceu.

JEO

Pergunto

Para onde olhas quando olhas?

JEO

Porque não vejo

Retrato de Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

Persisto em tentar encontrar a palavra que justifique o destino dos homens e das coisas. Porque me inquieta o facto de as árvores não andarem ou de os cães não terem outra linguagem que não o latido ou os homens não terem outro remédio senão esquecer ou lembrar ou rir ou chorar ou ter frio e medo ao mesmo tempo.

Persisto, talvez, porque sou homem e sofro de medos vários, de sede, de calor ou de frio, de cansaço e pasmo. De saudade de ver tudo o que não vejo neste momento.

Em resposta à minha inquietude vejo fechada a porta desta mente humana e limitada. É a porta das dúvidas contínuas que se não abre nunca. A porta dos mistérios insolúveis, guardados em segredo nas arcas de deus, nunca e sempre misericordioso.

A insaciável sede de respostas faz nascer em nós a fé nelas.

Pergunto-me: “Saber uma árvore não será sabê-las todas?, quem olha para ela não vê tronco, ramos, folhas e pássaros nelas? Haverá, assim sendo, sempre, um tronco em cada árvore, ramos, folhas e pássaros que nelas fazem ninho”.

Com isto fico satisfeito.

Mas o que mais me perturba é a vinda da noite. Quando cai sobre os meus olhos, ela confunde não só as árvores com as árvores, mas as árvores com a montanha, com as flores, as pedras, os caminhos, os ribeiros. Então, quando é noite, tudo é árvores, tudo é flores e riacho ao mesmo tempo. Não posso olhar o escuro e dizer: “Ali está a árvore com folhas, tronco, pássaros”. Não posso. Porque não vejo.

O melhor que faço é deitar-me e viver a luz nos meus sonhos. Que são sempre de dia. Aí vejo tudo, e fico satisfeito com o mundo e com as coisas. JEO

Simplicidade simples

A simplicidade das coisas é o que elas são. Uma coisa é uma coisa. Se alguém houver que diga que ela é muitas coisas, então, é porque essa coisa já não é ela própria. Porque é outras.

JEO

São muitas as dúvidas, senhor

De que me servem as teorias senão para pensar um pouco e esquecer depois? De que me serve o sofrimento senão para sofrer um pouco e, depois, esquecer que sofri? De que me serve tudo se de tudo me esqueço? Para que existo? Não sei. E não me lembro.

JEO

Amigo

Dave Matthews Band - Faces Oversized posters (c) The Dave Mathews Band

O gozo que me dá ver-te de longe em longe...

JEO

Quem diria?

Ninguém há que impeça a dor de ser sentida, nem tampouco que a ferida se cure sem ser limpa. Esperar o tempo das coisas. Perceber que o riso é também deste mundo. Quem disse que isto nunca foi assim?

JEO

...

A. Aubrey Bodine - Seneca Rocks, West Virginia(August 1943)(Small) posters

A. Aubrey Bodine - Seneca Rocks (1943)

A pedra não ouve porque não pede que lhe falem.

JEO

Nunca te esqueças

Corres até ao fim dos campos e escrevo-te.

Quando chegares à tua meta não te esqueças de mim. Escreve também.

JEO

As cores servem para que vejas o mundo tal como é

Blacklight - Eye posters

As cores (esvaem-se por instantes. Vou)

servem para (um sítio qualquer onde me)

que vejas (inteiro. Prefiro ser assim)

o mundo tal (como sou. Mais fácil)

como é (não ser o mar).

JEO

Coi sas sol tas

Penso em como ser ão as noites. De es pera. Quantas vezes te vou en carar, de frente, sem que com isso me digas ou des vendes pensamentos t eus. Gosta ria de te rever a todo o mo mento. Acontecem coisas destas com pessoas normais como eu. O que sin to será, por ventura ou des ventura, um sentimento banal. Como as pessoas. Outras. As outras.

JEO

Sejam bem-vindos à minha escrita

Em jeito de apresentação, vale sempre a pena revelar quem é a pessoa que acontece por detrás das palavras. Mas esta pessoa existe? Se existe, para que serve? Vão acontecer por aqui coisas simples, aviso já. Serão aqui lançados pedaços do tempo que é o meu e que agora partilho. Uma viagem, portanto.

JEO