Sem sequer olhar

Eia, eia, eia! Por aqui de novo, subindo escadas, subindo muros, de salto em salto. Já é de noite quando me aproximo de lugar algum. Ouvem-se zumbidos de toda a ordem. Luzes ao fundo, luzes, luzes numa cidade que já dorme, atenta e fiel a si própria. Imaginada? Não. Bem real. É nesta cidade que durmo. Acolheu-me e aqui estou. Um beco, uma porta de entrada, um hall, uma escada, duas mulheres que passam. Uma senhora à janela, mãos postas, como se toda a paisagem fosse o seu altar. Cabelo branco. A cidade é acariciada por uma brisa que faz cantar os plátanos. Passam dois carros. Que estranha noite. Um foco ténue ilumina um chafariz e eu passo por ele sem sequer olhar. Sem sequer olhar. Tenho pressa. Tenho alguma pressa de chegar a um lugar muito meu. A um lugar tão velho como eu próprio. Porque já estou onde estou. E se já estou onde estou, porque me dirijo para o lugar para onde vou? Porquê? Para onde? Para alguma encruzilhada, sinalizada a branco e azul? Sigo em frente. Sigo em frente neste passeio estreito e passo a mão, como uma carícia, por uma parede pintada a vermelho. Antiga. Era uma quinta esta quinta. A Quinta da Luz. Para onde vou? Nunca saberei. Esse será para sempre, e sempre, o meu mistério. O meu mistério. Também tenho direitos. Se ninguém criar um mistério para mim, tenho de ser eu a criá-lo. Adeus. Até já.

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