Dez da noite

São as dez da noite. Estou a chegar a casa. Sou eu quem dá, passo após passo, o rumo a este caminho tantas vezes repetido. Rumo a mim mesmo. Rumo a lugar algum. E aqui estou eu, penando por mais um passo, à procura de alguma coisa que não sei o que seja, de uma maresia, de um pedaço de ar que me afague a testa. De uma gota de suor. Silêncio. Quem serei quando, prostrado sobre mim mesmo, amado, odiado, afastado, ostracisado... quem serei nesses momentos? Por quem me tomo? Quantos sou, quantos fui e quantos serei? Por que nome me poderei identificar? Por que nome me identificarei amanhã quando te aproximares e disseres ‘bom dia, olha, está a chover’. Quem serei eu nesses momentos? Estou ofegante, apertado aqui nesta avenida. Passa um autocarro, um táxi e uma viatura particular, como soy dizer-se no calão policial que todos os dias me entra pelas orelhas e me sai pela ponta dos dedos. Escrevo notícias, dizem. Escrevo notícias. Estou quase a chegar a casa. E perco-me de mim mesmo no meio de todas as palavras. No meio de toda esta escuridão que me afoga, que me faz viver, que me alimenta. Eu sou esta falta de luz, este bater compassado do coração, esta chuva que cai às dez, este passo perdido que dou todos os dias no mesmo sentido, esta lacuna. Às vezes penso que o melhor seria vogar, vogar e não andar passo a passo, pouco a pouco, nada a nada. Uma miragem, um pequeno fôlego, um suspiro. Mais um passo. Estou quase em casa. Estou quase em mim. Quem serei quando entrar? Quem serei quando aquela chave rodar para a esquerda duas vezes e a porta castanha se entreabrir e no escuro daquela casa? Vou proteger-me, no escuro daquela concha. Vou encontrar-me a mim e a mim mesmo. Adeus e até amanhã.

Sem comentários:

Enviar um comentário